Eu e o veado em Denver: hipocrisia X gastronomia

The Buckhorn Exchange. O restaurante aberto em 1893 fica num predio de esquina, porta quase colada na linha do trem. Em volta, apenas terrenos vazios e umas casas com cara de abandonadas ha meio seculo. O ar, no verao, eh tao empoeirado e vermelho que da para sentir a respiracao pesar. Faz calor. Muito. Se eu nao estivesse em Denver, e a casa ficasse um pouco mais para o Sul dos EUA, nao estranharia ao ver algum despacho vodu na encruzilhada.

(ESTOU NUM TECLADO AMERICANO, POR ISSO NADA NESTE TEXTO TERA ACENTUACAO, TA?)

A primeira coisa que vejo ao abrir a porta eh uma imensa cabeca de bufalo empalhada, pendurada na parede. Olho para a direita e la esta a familia de veados– de todos os tamanhos, inclusive filhotes. Mais para o lado, outra familia, desta vez de lemures. Ao lado, passaros, felinos, antilopes… Para mim, que choro ate vendo Free Willy e mataria a pedrada os fdp que cacam filhotes de foca pra fazer casaco, a paisagem nao poderia ser mais horrorosa. “Ah, Ailin, deixa de ser incoerente. Voce mesmo quis vir aqui porque ouviu que tem a melhor carne de caca do estado!”, diz meu amigo, o cervejologo Xavier Depuydt. Ta, eu sei que ele tem razao e eu sou completamente hipocrita, mas saber que esses bichos todos foram abatidos apenas por diversao eh o que me agonia… como alguem pode achar divertido ver um animal agonizar? Matar para comer, va la, faz parte da evolucao. Mas ‘for fun’?!

Well… EU decidi ir la, entao eu que engolisse meu mal estar. Fomos para o andar de cima e sentamos num sofa que devia ter a idade da casa; fomos servidos por uma garconete de uns, vamos ver, 143 anos. Na parede, fotos antigas de familia com homens segurando armas, todos vaidosos, e uma fileira de veados mortos pendurados pela pata traseira. Achei melhor olhar o cardapio. Fiquei com vontade de provar o medalhao de alce (U$ 18), mas olhei pra parede e vi um. Entao escolhi as iscas de rabo de jacare fritas (U$ 10,75), enquanto Xavier foi de peito de pato grelhado, temperado com lavanda e pimenta, servido com molho de amora e zinfandel (U$10,75). Meu jacare estava delicioso: pedacos pequenos, com camada fina de farinha crocante e gosto da carne predominando, nao do empanado. O pato dele… sensacional, em fatias gordas e macias, molho aromatico, com exotismo que funciona.

Como nao tive coragem de encarar um carnao de tres quilos (U$ 134), fui de Big Bleu buffalo burger (queijo bleu, cogumelos salteados na manteiga, tomate, alface e cebola; U$ 9,50). Sabe carne alta, vermelhinha por dentro, suculenta? Era isso. O cogumelo salteado estava delicado, combinando perfeitamente com o salgadinho do queijo envelhecido; as batatas chips caseiras, finas e crocantes; e o feijao que acompanhava, surpreendentemente agridoce, picante e saboroso. O outro prato foi  tenderloin (file mignon) com salada— carne maciissima, mas o prato em si, nada demais.

Pedi o cardapio de sobremesa mas o veado que ficava ao lado da minha cadeira me intimidava cada vez mais. Voltei a me sentir acuada com todos aqueles animais empalhados ao meu redor. Fui ao banheiro lavar a mao. Na saida, dei com a testa no queixo de um bisao. Ai foi demais: pedi a conta e me mandei. A comida eh boa, mas minha hipocrisia venceu minha curiosidade gastronomica. Deixo o Buckhorn Exchange para quem nao se importa de descer a escada olhando pra uma onca empalhada com um peru na boca.

The Buckhorn Exchange: 1000 Osage Street, 534-9505, Denver, EUA

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