Por que você vai a um restaurante? Eu, para comer bem. Este é meu objetivo primeiro, antiquado, imutável, final. O que desejo é ter prazer com o que me será servido: análises, conjecturas e comparações acompanham inconscientemente o ato por fazerem parte do cotidiano da minha profissão, porém não são a parte mais importante. Mas hoje em dia isso é algo perigoso. Comer com objetivo de apreciar a comida tem se tornado ofensivo. É quase como elogiar cachaça no meio de uma degustação de Romanée-Conti: ignorância e incivilidade puras. Me sinto acuada diante dos cortantes olhares repletos de citações subjacentes, prontas para abocanhar raivosamente meu crânio. Não ser empertigada virou pecado.
As coisas complicaram demais…. Há os que frequentem restaurantes para serem os primeiros a “detectar” novas tendências prestes a emergir das ovas de ouriço ou do pó da macaxeira infusionado com ar de leitão pururuca feito na brasa de maple; outros para falar mal de tudo e se sentirem superiores ao resto do universo, os únicos com coragem de “dizer a verdade”; existem aqueles que precisam mostrar aos seus seguidores no Instagram que viajaram 25 horas e gastaram milhares de reais para comer um sushi de 100 dólares (geralmente os mesmos que tem como hobby compartilhar imagens de vinhos de milhares de dólares, explicitando sua riqueza e “bom gosto”).
Não se pode esquecer, ainda, dos groupies de chefs famosos – grupo que anda crescendo em PG -, dos especialistas em gastronomia formados em cinco segundos e dos “gourmands fazedores” de listas de melhores do mundo, da Ásia, da Europa, da cidade, do bairro, algo que voltou no meio gastronômico com força arrasadora de Thor. Me pergunto onde estarão os que curtem simplesmente comer, provar, criar lembranças, aumentar o arsenal de sabores. Talvez sejam mais discretos e menos detectáveis…
Durante 14 anos fui editora de revistas e sei bem como listas são um tremendo curinga no universo editorial: coloque um número X e as palavras “Best of” ou “Melhor de” e verá suas vendas aumentarem. Tudo bem, afinal faz parte do ser humano essa curiosidade, o desejo de se guiar pelo que considera confiável. Porém, listas são falhas por nascença, já que não existe júri 100% confiável – alguns são quase risíveis, aliás. Fácil encontrar listas elaboradas com base no “amiguismo”, no “hypismo” e menos em variáveis objetivas como qualidade de comida, inovação, serviço, mixologia, padrão. Chefs de talento incontestável e que preferem trabalhar a confraternizar com “influentes” veem seus nomes desaparecer, enquanto outros menos talentosos, mas com marketing pessoal impecável, são alçados ao píncaros da fama em milissegundos. Endeusar amigos/grupinhos em pautas/listas/posts/matérias sem a menor relevância factual, sem o menor gancho jornalístico, tornou-se prática frequente, especialmente por aqui. Triste e um tremendo desserviço.
Todo esse preâmbulo foi necessário para discorrer sobre minhas recentes experiências em alguns restaurantes presentes na festejada lista da S.Pellegrino e da revista inglesa Restaurant, conhecida como 50 Best. Passei algumas semanas na Ásia e apesar do meu foco principal ser comida de dia-a-dia, de rua (algo no qual o continente é pródigo), por força da profissão visitei alguns fine dinings, amplamente festejados. Um deles, Nahm, em Bangcoc – que inclusive levou o terceiro lugar na primeira edição Ásia do 50 Best dois dias depois da minha passagem -, foi a razão deste post.
Comandado pelo chef australiano David Thompson, considerado um dos ocidentais com maior conhecimento em cozinha tailandesa, o Nahm, em tese, é o grande representante da nova era da comida asiática, que une receitas tradicionais a toque autorais em endereços chiques e contas caras. Fiz a reserva com vinte dias de antecedência e optei pelo menu degustação de sete etapas (o valor final girou em torno de 170 dólares, para duas pessoas, algo caríssimo em um país onde se come lindamente por R$ 10). Assim que fui levada a minha mesa, pego o menu de drinques e tenho o primeiro choque da noite: “Classic Caipirinha” feita, de acordo com a descrição, com “cuban gold rum, fresh lime, brown sugar”.
Perguntei para o garçom como eles servem caipirinha CLÁSSICA com rum se o drinque, brasileiro, é preparado com cachaça. “Seria o mesmo que servir gin tônica com vodca”, disse. A resposta: “não temos cachaça”. Apenas isso. O fato de um restaurante deste nível ter uma coquetalaria tão pessimamente informada e nada séria já ligou todo o meu sistema de segurança.
Os primeiros pratos foram: 1) porco apimentado com menta, amendoins e arroz crocante servido com folhas de betel; 2) sopa de pato com manjericão tailandês e leite de coco; 3) curry de coco e curcuma com siri mole e limão. Sequência de desastres: 1) tão apimentado a ponto de ser incomível, isso porque amo pimenta e já estava há 15 dias na Ásia; 2) absolutamente doce; 3) salgado ao extremo. As outras etapas foram chegando e, uma a uma, revelando-se mal executadas. Ruins, em suma. NADA estava equilibrado – o tão conhecido equilíbrio de acidez, dulçor e picância da culinária asiática. Nada tinha a menor delicadeza. Nada. Uma das piores refeições da minha vida. A cada garfada me perguntava COMO alguém votou naquele lugar. COMO tanta gente o fez. Dia seguinte, uma amiga americana, também crítica gastronômica, me escreveu que havia ido ao Nahm: “absolutamente decepcionante” foi o veredito.
Muito mais feliz foi minha passagem pelo Sra Bua, também em Bangcoc e 29. na mesma lista, comandado pelo chef dinamarquês Henrik Yde-Andersen. Criações belas e agradáveis, executadas com técnica precisa, além de excelente coquetelaria. Os pratos que mais me marcaram foram a fresca e original salada de lagosta com avocado acompanhada de sorvete de curry vermelho, o excelente peixe empanado em Panko servido com cogumelos em molho Tom Kha e o bolo de laranja com sorbet de tangerina, lemon curd e neve de leite condensado. O valor da degustação? O mesmo do Nahm.
Então, no meu último dia de viagem, já em Cingapura, foi a vez do Andre, que detém o quinto lugar na lista. A reserva mais difícil da minha vida: cinco emails, folha assinada com dados do cartão e uma mega taxa em caso de desistência. Durante as férias, havia lido quatro matérias, em diferentes veículos, incensando o restaurante. Não dá pra não criar expectativas.
Salão pequeno, agradável. O chef, André Chiang, de uma simpatia ímpar: sorridente, foi até a mesa, me levou até a cozinha, tirou várias das minhas dúvidas sobre a criação e feitura dos pratos. Em cada etapa, nota-se a técnica perfeita. Serviço, um dos melhores que já vi: prestativo sem ser invasivo e plenamente capacitado nas explicações. Excelente carta de vinhos naturais e de pequenos produtores. Provei algumas coisas realmente inovadoras e interessantes, como a entrada “solo e cogumelos” – na verdade, a terra é uma mistura loucamente viciante de chocolate meio amargo e alho; os cogumelos, delicadíssimos merengues de porcini. Outras, mais óbvias mas não menos gostosas, como a gelatina de foie gras com geleia de trufas negras e flor de sal. Boa refeição, mas poderia ter sido feita em qualquer lugar do mundo.
Taí algo que me incomoda deveras, essa pasteurização da alta gastronomia, a globalização de sabores. Não vejo sentido algum em pedir foie gras com purê de batata no L’Atelier de Joel Robuchon em Hong Kong ou ir ao mozzarella bar da Osteria Mozza, em Cingapura. Não faz sentido nenhum cruzar meio mundo para consumir ingredientes que estão fora de seu contexto e que também viajaram milhares de quilômetros para chegar ali. Exemplos de grandes chefs que trabalham lindamente ingredientes locais: Roberta Sudbrack, Virgilio Martinez, Helena Rizzo, Bo Bech, Alex Atala, Bel Coelho, Felipe Bronze, os irmãos Castanho. Seus restaurantes são profundamente vinculados ao lugar em que estão, ao terroir. Acho isso lindo.
A real é que não há lista, olhares tortos ou tendências que me ditarão o que devo ou não, posso ou não, comer ou gostar. Não tenho problema nenhum em afirmar que curti muito mais um kebab de 10 reais preparado num pé-sujo em Istambul do que o menu-degustação do terceiro melhor restaurante da Ásia: isso não faz de mim melhor ou pior, mais cool ou menos cool. É apenas a minha experiência.
Tenho menos problema ainda em dizer que como por prazer e que isso me faz feliz. Espero não estar sozinha nessa.
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