Você não verá a Enoteca Saint Vin Saint nos roteiros dos maiores jornais e revistas do país. Provavelmente também não estamparão a capa de nenhuma publicação dedicada a gastronomia. E nada disso se deve ao fato da comida não ser boa ou o chef, incompetente. Nesse caso, aliás, muito pelo contrário.
Lis Cereja, a proprietária, sommelière e chef, se preocupa muito mais com seus ideais do que com fama rápida ou tapinhas invejosos nas costas. Se preocupa em servir a melhor comida possível na acepção mais pura da palavra – sazonal, sem agrotóxicos, hormônios nem sofrimento animal. Se ela é uma santa? Não. Ao meu ver, apenas sensata – e como são raros os sensatos!
Lis formou-se em nutrição: não se achou. Foi cursar gastronomia: amava a prática mas nem tanto o ambiente. Então foi estudar vinhos e se encontrou. Mas independentemente do que fizesse, a preocupação com a origem do ingrediente permeava sua vida, assunto este não muito bem vindo no universo do vinho, tão comercial quanto petulante, o que fez Lis tornar-se persona non grata. Como assim aquela garota ousava questionar os medalhões da enologia e falar nos perigos à saúde das dezenas de aditivos químicos ao invés de perceber ‘notas de grama molhadas pela primeira gota do orvalho da manhã da Toscana’?
Sem dar muita bola, ela aprofundou-se de tal maneira no universo dos orgânicos e biodinâmicos a ponto de tornar-se a proprietária do único restaurante do país com carta 100% voltada aos vinhos naturais, tendência crescente na Europa, especialmente França e Alemanha (e isso vi in loco).
Em 2015, a Enoteca Saint Vin Saint completa sete anos de vida. Sete anos complicados em um mercado ainda tão cru no tema de respeito ao alimento e aos métodos de produção como é o Brasil:
“Escolhemos o caminho mais difícil: não fazer divulgação. Nunca acreditei que a mídia fosse me trazer os clientes e os amigos que me entenderiam. E eu estava certa. Mas é um processo dolorido. Você perde dinheiro, perde forças, passa noites em claro fazendo contas até que os clientes começam a aparecer. Mas quando aparecem, não tem volta. E hoje a maioria dos dias, só atendemos com reservas”, diz Lis.
Sim, quando começamos a nos alimentar com informação e passamos a entender que somos o que comemos (e o que come o que comemos), não tem volta: deixamos o lodaçal gourmetido e adentramos no mundo tão fascinante quanto aterrador da atual cadeia de produção.
Sou muito fã do trabalho de Lis e Ramatis, seu marido, também sommelier. Eles estão todas as noites na casa, servindo os clientes, explicando cada detalhe de cada vinho, descobrindo e selecionando fornecedores que atendam a seus padrões, administrando a cozinha minúscula da onde saem delícias feitas com ingredientes orgânicos, caso da pequena jóia chamada de bombom de foie gras (trata-se de uma capa crocante de chocolate amargo envolvendo deliciosa terrine de foie gras da casa – feita de fígado de gansos que não passam por alimentação forçada – e lambuzada por redução de Jerez).
O que dizer do meu hambúrguer favorito dos últimos anos além de “bom para caceta”? A fatia de pão macio serve de suporte para o burger de carne e miúdos de pato criado solto, picles de pepino, aioli, mostarda dijon, bacon e um lindo ovo orgânico frito. Ao lado, palitos de mandioca frita (R$ 49).
Prove a Tábua de embutidos artesanais sem adição de nitrito, nitrato e glutamato monossódico do Chez Pierres, Friccò e Adriana Lopez (R$ 59), Ah, você não sabia que 99,9% dos embutidos que come, mesmo os gourmet, levam uma porrada de conservante, corante e realçadores de sabor? Pois levam.
Prove também a Copa de javali – criado solto e sem levar choques – com legumes caramelizados (R$ 63) e o Bloc D’agneau Maison: pernil de cordeiro assado lentamente, desfiado e grelhado sobre cama de tzaziki (R$ 59).
Comida bem temperada, corajosa em sua simplicidade, prazerosa e saudável no sentido mais amplo do termo. Viva.
Querendo fazer um passeio pelo cardápio e pelo mundo dos vinhos naturais, vá de menu degustação de seis etapas, harmonizado, a R$ 199 por pessoa.
Durante o almoço, o executivo sai a R$ 49 e inclui salada orgânica ou creme do dia (tremendos cremes!), prato principal e sobremesa. Algumas das opções: Carne de panela com legumes, arroz branco no alho; nhoque de mandioquinha com brócolis, tomates, alho e dedo de moça; risoto de bouef Bourguignon. Para adoçar, brigadeiro cremoso com crumble de pistache; sorvete do dia; doce de banana da casa.
Por trabalhar com ingredientes orgânicos, o cardápio muda com certa frequência: nestas hortas, ainda não existe o conceito de “tudo, o tempo todo, na maior quantidade possível”. Cada planta tem sua época, como deve ser.
Lugares e pessoas assim me fazem continuar acreditando que o universo da gastronomia pode, sim, ser muito mais do que listas bobocas, glamour imbecilizante e discursos tão lindos quanto inócuos. Lugares e pessoas assim me fazem continuar acreditando que a gastronomia pode nos conectar com a terra, nos fazer mais humildes e, ainda, nos dar prazer.
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