Alta gastronomia passou a fazer pouco, ou nenhum, sentido para mim.
Sim, é uma forma de arte. Maneira de transformar a visão de mundo do chef em bocados apreciáveis pelos sentidos. Mas, ao meu ver, essa arte foi caminhando para um cruzamento entre Romero Britto e pós-modernismo performático: tola, sem alma e petulante.
Com o crescente importância dos prêmios de best isso e aquilo, a vinda do Michelin pro Brasil, documentários transformando cozinheiros em personagens míticos, a (bizarra) ‘influência’ de foodies de carteiras tão recheadas quanto cabeça oca e o ego de alguns chefs inflando descontroladamente, me aborreci. Esse microcosmo, apesar de continuar contendo profissionais extraordinários, se tornou azedo.
Em minhas viagens recentes, tenho preterido restaurantes ‘premiados’ por locais em que o chef está presente de alma – e corpo. Bares, tavernas, osterias: o que importa é sentir o amor pelo ofício e não o anseio por um lugar no panteão da gastronomia mundial.
Nesta semana, porém, a alta gastronomia voltou a fazer sentido pra mim. Alta gastronomia como deveria ser: elevação do ingrediente ao seu melhor, inovação aliada a profunda compreensão dos insumos locais, sazonalidade tratada com reverência. Durante as duas horas em que fiquei à mesa do Tuju, provando o novo menu de inverno do chef Ivan Ralston, relembrei a razão de alguns chefs merecerem aplausos.
Ivan é um dos chefs mais talentosos que conheço. Quieto, concentrado, avesso a badalação. Workaholic: nunca deixei de encontrá-lo em sua cozinha, em todas as várias vezes que fui ao Tuju. Ivan consegue ver, com clareza cristalina, as potencialidades não-óbvias dos ingredientes, caso do chuchu cozido em caldo de camarão selvagem, coberto por granita de Noilly Prat, que abre seu menu de 12 etapas (R$ 320). O legume empresta crocância e torna-se um veículo da potência do mar, suavemente mesclada a acidez do vermute.
Sua extrema delicadeza na concepção dos pratos – em que nada grita e tudo fala macio – faz uma refeição de doze etapas transcorrer prazerosamente, sem peso. E há coerência. Nada é por acaso. Exemplo é o amplo uso de peixes e frutos do mar: “No inverno a água fica mais fria e a variedade marítima, muito maior. É a melhor época do ano”, diz Ivan. E o mar invade a mesa em composições tão belas… Na sardinha marinada sobre pão de alho negro, no adocicado ouriço sobre abóbora com limão galego, no polvo na brasa acompanhado por favas verdes em missô de castanha-portuguesa.
E as sobremesas. Que primor.
Depois da última mordida no cremoso e defumado bombom de tabaco, que fecha a degustação (faz parte de um quarteto de chocolates que representam os males da sociedade moderna), respirei agradecida: ali, naquele instante, voltei a ver beleza na alta gastronomia.
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