Ué, mas nem todo vinho é natural?
Não é como se fosse suco de uva fermentado?
Então… não, não é.
Suco de uva fermentado é o que chamamos hoje em dia os vinhos feitos com o mínimo de intervenção humana, como naturais, biodinâmicos e alguns orgânicos. Importante lembrar que aqui não estou falando de certificação ou selos, mas sim da filosofia do produtor.
Ok. Vamos ter que ir por partes. No início, pra muita gente esse papo pode parecer loucura, soar estranho. Como assim, eu fui enganado durante todo esse tempo? É, você foi. Aliás, eu também, durante anos da minha vida não fazia lhufas de idéia de como se fazia vinho industrialmente, e ficava babando ovo para as grandes empresas e os grandes rótulos de vinho que fazem sucessinho no mercado.
Esse estranhamento e essa frustração de se sentir meio enganado, meio lesado como consumidor e ser humano é normal – é como quando você descobre que seu pão integral de saquinho pode fazer menos bem do que um pão francês. Mas lá não está escrito que faz bem para a saúde? Pois é, meu amor, bem vindo ao marketing da alimentação saudável. O vinho também entra nessa.
A indústria enológica também faz questão de fomentar a imagem de que todos os vinhos são artesanais, familiares e respeitam o terroir. Mas até o final desse capítulo – espero eu – vocês já não acreditarão em papai noel, em coelho da páscoa, em fada do dente…. e nem que todos os vinhos das prateleiras por aí são feitos de maneira artesanal e natural.
Os vinhos que encontramos hoje no mercado, chamados “convencionais” (alguns falam em tradicionais, mas acho o termo pra lá de errado, uma vez que vinho tecnológico não tem nada a ver com tradição) são vinhos elaborados, às vezes mais, às vezes menos, de acordo com uma escola enológica onde o vinho é um produto feito pela mão do homem, e não da natureza.
Em tempo: mil perdões a todos os meus amigos enólogos. Adoro vocês de coração. Mas saber cozinhar não significa que você precisa ter feito faculdade de Gastronomia. No vinho, é a mesma coisa. Fazer vinho não precisa de escola de enologia – aliás, muitas vezes, só estraga. Pois a maior parte das escolas de enologia vão ensinar uma “receita” de como fazer vinho tecnológico.
Salve, não sou contra os enólogos. Pelo contrário. Nem contra o conhecimento acadêmico ou tecnológico – nem de longe, acho que informação, conhecimento e tecnologia é sempre bom. Mas desde que não estrague e nem mascare o vinho. Aliás, que não estrague e nem mascare as pessoas por trás do vinho também.
Podem chamar como for: vinhos convencionais, vinhos industriais, vinhos tecnológicos. O que temos é um produto que não é mais suco de uva fermentado, mas sim, suco de uva fermentado e manipulado de acordo com as necessidades do produtor, do mercado, da produtividade, do valor, e etc. O que não é necessariamente ruim, me entendam. Sem a indústria do vinho, sem a produção convencional, provavelmente não teríamos as opções que temos hoje, as importações, o mercado. Não estaríamos falando aqui sobre vinhos, inclusive. Mãs….. como vovó e muitos outros sábios já diziam, a diferença do remédio e do veneno é a dose.
E industrializar o vinho, como a alimentação, muitas vezes engloba adições de produtos químicos de monte e modificações e intervenções diversas no produto, desde o pé da uva até o vinho engarrafado. Que não necessariamente vão fazer mal à saude, ou pelo menos não de imediato. Mas entre a teoria e a prática, existe um monte de coisas: como por exemplo vinhateiros que aplicam produtos químicos e não respeitam as carências, ou então produtores que aplicam defensivos de outras frutas nas uvas, ou aplicam 3 vezes em vez de uma para “garantir” a produção.
Grande parte desse estranhamento, quando falamos que hoje em dia a maioria dos vinhos é feito praticamente como se faz uma bolacha recheada, um refrigerante ou um suco de caixinha, é por que ainda existe uma imensa confusão sobre o que é vinho e como é feito o vinho.
Como eu disse antes, a maioria das pessoas ainda acha que o vinho que ela compra foi pisado pelos pés dos avós do dono da vinícola, e que ali dentro só tem uva fermentada. Aquela imagem da pessoa colhendo as uvas, amassando e estocando em porões, na maioria das vezes é história para boi dormir: ou então, usando a palavra correta, marketing. E como o grande público desconhece como é um processo industrial de produção de vinho, a maioria acredita mesmo.
Antes que as pessoas comecem a enfiar suas agulhas nos seus voodos (o que hoje se se transformou em comentários no facebook, instagram ou afins), um apelo: leiam com atenção e de cabeça aberta antes de achar que isso é obra de algum eco-fanático da esquerda do vinho.
Não estou condenando a indústria, o sistema capitalista ou as pessoas que fazem vinho comercialmente. Apenas sou a favor que as pessoas saibam – mesmo – como se faz o vinho que tomam. Para daí, decidirem qual vinho querem botar para dentro do corpitcho. Aliás, com o tempo, vocês vão ver que minha grande revolta não é contra o vinho industrial – mas é no fato das pessoas não terem escolha, pois não sabem do que se trata. Assim como os alimentos industrializados e boa parte dos alimentos transgênicos (que, particularmente, não sou contra ela em si, mas sim, a aplicação comercial que muitas vezes pode ser cruel, sem dar chance para o consumidor de querer consumir ou não, de querer alimentar uma máquina comercial ou não).
Em tempo, não são todas as vinícolas que não são naturais-biodinâmicas-orgânicas que são o terror na face da terra. Existem trocentas vinícolas e vinhateiros que não são orgânicos mas usam com respeito, bom senso e competência os insumos enológicos. Que não fazem na garagem de casa, mas continuam com processos em pequena e média escala. E embora eu mesma não vá consumir, tenho que dizer que são vinhos extremamente honestos, feito por gente igualmente honesta. Ou seja, entre o céu e o inferno existem muito mais vinícolas do que imagina nossa vã filosofia – portanto, em vez de assumir o que eu digo como verdade absoluta ou como total asneira, vá você por conta própria pesquisar sobre o assunto, e sobre cada vinho que você bebe. Acredite. Pelo bem, pelo mal, você vai se surpreender com muitas coisas que você não sabia. Eu mesma continuo sempre me surpreendendo.
Já tive que ouvir de amigos ou clientes, diversas vezes, que eu estava inventando coisa ou que estava querendo fazer parte de uma teoria da conspiração sem fundamentos. E que todos os vinhos eram produtos naturais, pois vinham da uva. Bom, ainda bem que depois de muito explicar, boa parte dessa gente hoje em dia só toma vinhos não manipulados. Então vamos lá.
Pra início de conversa:
- Você sabe quais os tratamentos químicos utilizados no vinhedo daquele vinho que você bebe?
- Quantas vezes são feitos esses tratamentos?
- São herbicidas, são pesticidas, e qual a carência dos produtos?
- Afertilização do terreno é feita como? NPK? Ou outra maneira?
- A dormência das videiras é feita artificialmente?
- E os taninos artificiais, em pó? E os aromatizantes? São utilizados no seu vinho?
- E os chips de madeira? Ou barrica? Ou tanque de inox?
- O mosto fermenta em que condições?
- As leveduras, você sabe se são naturais ou se são selecionadas?
- A malolática é induzida artificialmente, ela ocorre naturalmente ou ela não ocorre?
- Qual o tipo da levedura usada? É uma levedura genérica ou ela aporta alguma característica ao vinho?
- O controle de temperatura é feito de que maneira? É feito?
- Há aplicação ou uso de SO2 ou metabissulfito em alguma parte da vinificação?
- A acidez e corrigida?
- O vinho é passado por algum filtro de osmose?
- Ele é filtrado? Clarificado ou estabilizado artificialmente?
- E no vinho, você sabe qual é e qual a dose de conservante utilizada? Qual é esse conservante? É em doses altas ou baixas?
- Quais das centenas de produtos enológicos permitidos na indústria enológica são usados na hora de fazer o seu vinho, como antioxidantes, ativantes, nutrientes, bactérias, leveduras, clarificantes, desacidificantes, enximas, estabilizantes, taninos?
Ahn. Não tem idéia? Bem vindo à indústria do vinho. E a parte 2 deste texto.
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