Celebridades vivem em um universo de neutralidade apática. Um microcosmo no qual parece não haver política, guerras, questões sociais e raciais. Tirando algumas exceções, famosos (por quaisquer motivos) evitam ao máximo opinar sobre assuntos polêmicos. A razão é fácil de compreender: boca fechada não perde dinheiro de publicidade. Quanto mais cara e pose de paisagem, mais dígitos na conta corrente.
Apesar do “fingismo de morto” ainda imperar, as coisas estão mudando. Lentamente, mas estão. Vem aumentando o número de figuras públicas que deixam de ter medo e passam a ter orgulho em defender causas com as quais se importam. Feminismo, combate ao racismo, agricultura orgânica, parto natural, direitos LGBT, entre outras. Algumas marcas já viram que figuras de atitude valem muito mais (no sentido real e figurado) do que zumbis sociais.
Um dos chefs mais tranquilos em expressar suas convicções é o confeiteiro Lucas Corazza, apresentador do Que Seja Doce (ao lado de Carole Crema, Felipe Bronze e Roberto Strongoli), no GNT. Há alguns meses ele se viu no meio de um bombardeio de ofensas dos fãs do também chef – e também televisivo – Erick Jacquin ao dizer em um post de Instagram que o francês havia sido machista durante participação em um programa da Band. “A contribuição dele para a gastronomia brasileira é indiscutível, mas ele é escroto e machista. Não gosto disso e é meu direito. Até porque já passei por machismo por muitos anos. Ser homossexual e ser mulher é bem parecido quando se fala em enfrentar preconceito”, diz Lucas.
Em um país homofóbico como o Brasil, ainda é bem complicado para os homossexuais ascenderem profissionalmente. Mais complicado ainda é encarar o o dia-a-dia de risadinhas e ofensas mascaradas de brincadeira. “Quando percebi que passaria por preconceito na minha profissão, enfrentei aquilo. ‘Tá achando que sou veado? Sou mesmo. Se você acha que ser viado é um defeito, eu posso encontrar vários em você que não tenham nada a ver com sua sexualidade. Você pode ser incompetente, o que é muito pior numa cozinha…’ Eu notei, bem cedo, que provavelmente não me tornaria sous chef de um restaurante porque minha relação nunca venceria a barreira de não ir com o chef para um puteiro ou para um bar pegar mulher, hábitos bem comuns na época”, diz.
Sempre me diverti com o pavor da maioria das celebridades ao serem inquiridas sobre temas relevantes. Passei boa parte da minha vida jornalística como entrevistadora (nas revistas VIP, Playboy, Alfa, Época, Viagem e Turismo, Quem) e não raro as pupilas dos meus entrevistados se dilatavam quando o assunto ia para além de sua carreira/papel. “Uma das funções da pessoa que se torna pública é buscar outras para as quais ela possa emprestar voz“, afirma Lucas. “Mas há um medo em tomar posições por que muita gente pensa ‘Posso me enfraquecer perante quem não concorda? Comercialmente?’. Infelizmente é fato que se você vira e fala que é a favor de algo, para de conversar com todos que não são. A resposta contra é opressora, forte, irritante”. Os gritos dos haters são sempre altos. Ocos em argumentos mas estridentes. Não é raro encontrar quem pare de se colocar por falta de estrutura para lidar com tantas pedradas virtuais. Ainda bem que existem aqueles que não sucumbem…
Lucas também promove questionamentos raramente levantados por seus pares de ofício: “Me incomoda demais profissionais que não sabem a história da matéria prima que usam, que não ligam o fato de que aquele chocolate na sua frente veio de cacau da Costa do Marfim (o país é o maior produtor do mundo), produzido com tráfico humano e de crianças, com trabalho escravo, controle de milícia. Cacau de sangue”, diz. “Lógico que os belgas tem o melhor chocolate: quem não se importa com tudo o que há envolvido na origem da matéria-prima, só tem que se preocupar com o refinamento dela”. Há alguns anos, Lucas trabalha apenas com cacau e chocolates nacionais, dando destaque também para outros ingredientes brasileiros como frutas, castanhas e especiarias.
Ao falar sobre doçaria, é impossível não abordar o assunto açúcar. Enquanto muitos doceiros preferem ignorar o fato de que lidam com algo que é tanto um provedor de prazer quanto desencadeador de doença, Lucas parece não ter problema em ver a vida como ela é: “Quantas são as fontes de açúcar que temos num dia? Carboidratos, sucos, refrigerantes, frutas… E qual a necessidade efetiva de todo esse açúcar? Não é fisiológica, claro: ninguém precisa de tudo isso. É desejo. É vício, e ninguém gosta de falar sobre o próprio vício”, diz.
“Quando eu termino a gravação do programa (Que Seja Doce), em que como nove doces por dia, preciso fazer detox. Tenho que excluir açúcar da minha dieta por uns tempos. Eu acredito em consumo consciente de açúcar: é preciso parar de encarar comida como volume e ver como qualidade. O valor de três caixas de Bis podem pagar uma fatia de bom bolo? Ótimo, o bolo vai ter que te satisfazer por três dias. O grande problema é que as pessoas confundem custo-benefício com custo-volume”.
Você já reparou se, mesmo sem querer, não cai nessa de preterir a qualidade pela quantidade? Alguma vez leu a lista de ingredientes de uma barra de chocolate? O fato é que ‘adoramos’ coisas que foram desenhadas para despertar nosso vício. Coisas atoladas de sal, açúcar, gordura, realçadores de sabor. Será que gostamos mesmo do que é bom? “Dá uma olhada em qual restaurante ganhou como o melhor pelo voto popular na Veja no ano passado: Outback, que esconde totalmente o sabor da carne com gordura, pimenta e açúcar. Porque pra isso não precisa de talento… Nosso paladar está pavimentado, deseducado. E a indústria de alimentos não só se aproveita disso, como incentiva”.
Quer dizer então que o negócio é abraçar a naturebice e viver in love com a chia? “Para contrapor essa era de megaindustrializados, surgiu a nova classe dos ‘Não vou mais comer, vou me alimentar. Não ingiro glúten nem lactose e sou fit’. Gente, é a outra ponta exata! Esse pessoal assume como verdade tudo e qualquer coisa que lê! Lembra da moda do suco verde? Pois é, um amigo desenvolveu hepatite de tomar tanto suco verde por conta da quantidade de agrotóxicos nos legumes, frutas e verduras que usava. Estava praticamente liquefazendo pesticida!”.
O que Lucas reafirma, mesmo sem querer, é que polêmica pode ser uma arma poderosíssima para fomentar discussões importantes. Sendo assim, palmas para as pessoas públicas que não tem medo dela – nem dos haters.
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