Pão é o alimento mais básico, versátil, presente e democrático do planeta.
Portanto, farinha – especialmente a de trigo – é um item essencial à humanidade há milênios.
E do quê é feita a farinha de trigo?
A pergunta parece imbecil – e deveria ser. Mas não é. Atualmente, no Brasil, a farinha de trigo não leva apenas trigo. Podem existir diversos outros itens em sua composição, dispensados da obrigatoriedade de constarem no rótulo. Sendo assim, não fazemos ideia do que consumimos. Não fazemos ideia de que a maioria da nossa farinha leva alvejante – sim, ela não é branca só por conta da moagem – e um punhado de outros componentes que, em tese, melhoram o produto.
O fato é: se estamos ingerindo isso, e de acordo com o governo não existe nenhum problema nestes compostos estranhos ao trigo, porque não sabemos nada sobre eles?
Algumas substâncias encontradas em boa parte das farinhas brasileiras (exceto nas orgânicas e em algumas provenientes de moinhos artesanais espalhadas pelo país) não configuram, por lei, como ingredientes adicionados, mas sim ‘melhoradores’ – e essa a única descrição que vem na embalagem. Esses ‘melhoradores’ tem funções como aumentar o valor nutricional da farinha e melhorar a textura, entre outras. Azodicarbonamida, ortofosfato tricálcico, Fosfato de amônio dibásico, Óxido de Cálcio e Cloridrato de L-cisteína são alguns deles. Querendo saber o uso de cada um dos melhoradores autorizados, clique AQUI.
Alvejante… fiquei meio chocada em saber que aquele pó branco, no Brasil, pode ganhar essa cor por ser tratado com peróxido de benzoíla. A brancura, que deveria ser fruto do processo de moagem (que tira a casca e a parte externa, mantendo apenas o coração dele) e variedade do grão (alguns são naturalmente menos pigmentados), pode ser artificialmente adquirida através da adição de uma substância também presente em remédios contra acne. Não são todas as empresas que o utilizam, mas como não há obrigatoriedade de descrição no rótulo, o consumidor simplesmente não sabe se há, ou não, este químico (assim como os outros descritos acima).
Nossa farinha de trigo é um coquetel misterioso.
Qual a razão para ‘melhorarmos’ um produto que funcionou tão bem por milênios? Além da indústria alimentícia precisar manter o pão/doces/bolos e afins nas prateleiras por longos períodos, para maximizar seu lucro – você já se perguntou a razão daquele pão fatiado do supermercado durar semanas sem endurecer? -, o fato primordial é a má qualidade da nossa farinha.
Ao contrário do que disse no vídeo acima – que traz o processo completo de produção de um dos melhores moinhos italianos, o Caputo -, parte do meu canal do YouTube, o #PorTrasDaKg, o Brasil não é um grande produtor de trigo, mas sim um grande importador. Entre 60% e 70% do que trigo consumimos no país vem da Argentina (com imenso uso do pesticida glifosato, também amplamente usado nas lavouras brasileiras), Paraguai, EUA e Uruguai. Porém, boa parte de nossos moinhos e distribuidores não tem lá o melhor controle de qualidade, nem de padronização da matéria prima, tornando muito complicado para um padeiro ou pizzaiolo artesanal manter a regularidade do seu produto final. A razão disso ser essencial para esses profissionais é que farinha não é só farinha: há diversos tipos – encontrados facilmente na Europa e nos EUA – para diversos fins.
Não dá pra fazer brioche com farinha de bolo ou pão de fermentação longa com farinha que se usa para espaguete. Não, não é frescura: é química.
Como você pode assistir no vídeo acima, cada espécie de trigo – provenientes de duas grandes famílias, Grano Tenero e Grano Durum – tem composição específica, o que resulta em farinhas bem diferentes entre si. A análise dos grãos realizada por moinhos sérios envolvem teor de proteína e amido, potencial de absorção de água e elasticidade e força do glúten (proteína também presente em outros cereais como espelta, cevada, triticale e centeio), entre outros itens. Para saber mais sobre o assunto, clique AQUI.
Na Itália, há as farinhas 0, 00, 1, 2 e integral.
Nos EUA, pastry flour, all-purpose flour, high gluten flour, first clear flour,whole wheat flour.
No Brasil, branca especial, branca, integral.
Essa qualificação se refere a sequência de refino do trigo – quantidade de processamento do grão, da retirada de suas camadas em direção ao centro -, do maior para o menor, o que resulta em produtos distintos em estrutura e uso. Quanto maior a oferta de variedades, mais acertada será sua utilização. E com melhores resultados.
Por tudo isso, tantos padeiros/pizzaiolos/confeiteiros que prezam pela qualidade de seus produtos acabam por importar farinhas italianas (ou francesas, alemãs) de pequenos e médios moinhos, que possuem muito mais controle sobre a origem da matéria prima, seu refino e composição físico-química. Nestes casos, 100% natural e sem aditivos.
Há também outra gama de aditivos legalizados no Brasil que podem ser colocados na hora da panificação – ou já vem misturados a farinha no que se chama de pré mistura, usada amplamente nas padarias – que incluem Hemicelulase, Glucose-oxidase, Amiloglucosidase, L- glutationa, Monoglicerídeos destilados de ácidos graxos vegetais hidratados, entre outros. Suas funções compreendem aumentar tolerância à fermentação e volume, melhorar a extensibilidade da massa em máquinas, emulsificar, dar mais maciez e umidade ao miolo, etc.
Sabe quando nossa farinha – e tantos outros itens presentes em nossas mesas – vai melhorar?
Quando existir mais transparência da indústria alimentícia, o que só acontece por pressão dos consumidores.
Quando o governo se curvar menos ao lobby das grandes empresas, que adoram manter tudo às escuras, e aprovar leis mais sérias quanto a rotulagem.
Quando tivermos mais informação sobre o que estamos comendo.
E, principalmente, quando passarmos a exigir mais qualidade.
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