Não tão ruim quanto esperava; não tão bom quanto gostaria.
Essa foi minha conclusão após passar dois dias em alguns aviários e unidade de processamento da Seara, em Santa Catarina, e checar – de perto, sem restrições – a criação, o transporte dos animais vivos, o abate, o desmembramento e embalamento.
Já aviso: este texto é bem longo.
Meu desejo de acompanhar a produção de aves da grande indústria brasileira vem de longe – tantas eram as perguntas: é verdade que se usa hormônio? As galinhas vivem 24 horas por dia sob luz para comer mais? – mas se intensificou de forma gritante ao ver, ano passado, dois nomões da gastronomia assinarem embaixo das gigantes do mercado, no Seara e Sadia. Alex Atala não me causou tanto estranhamento visto seu histórico de campanhas publicitárias (caldo pronto, café de qualidade aquém da mediana). Mas Jamie Oliver? Opa, esse me chocou.
O cara que sempre admirei por ter construído um império baseado em estimular as pessoas a conhecerem o que comem, a cozinharem, a evitarem as áreas de “empacotados” do mercado em prol dos corredores de verduras, frutas e legumes?
Que conseguiu mudar o menu do McDonald’s do Reino Unido?
Que luta contra a obesidade infantil, resultado do aumento desenfreado do consumo de “alimentos” e refrigerantes de gigantes multinacionais?
Que sempre valorizou pequenos produtores e a cultura gastronômica de cada região, de cada país?
Que defende a comida fresca?
Como ESSE homem assina uma linha de congelados para a mesma empresa que fabrica presunto com proteína de soja e entope boa parte de seus produtos com corantes, antiumectantes, conservantes e realçadores de sabor – e que ainda tem a cara de pau de carregar o slogan “Deliciosamente Saudável”?
Não por dinheiro – ja é milionário.
Não por ingenuidade, certamente: ele sabe muito bem que associar-se ao nome Sadia o atrelará, diretamente, a TODO o portfólio da marca e não somente aos seus frangos com “melhores padrões de bem estar animal”. E foi exatamente por isso que a empresa jogou um caminhão de dinheiro nessa parceria…
Jamie Oliver topou, muito provavelmente, pela grana preta investida pela marca em seu projeto FoodRevolution, que tem como objetivo levar consciência e educação alimentar para as escolas: mas dá mesmo para fazer revolução alimentar bancada pela indústria que lucra com gente comendo nuggets e apresuntado, e não brócolis, maçã ou arroz com feijão feito em casa? Hum, sei não.
REPORTAGEM ESCRITA EM 2016, POR ISSO TRÁS NOTÍCIAS DA ÉPOCA, COMO ABAIXO.
Há cerca de um ano, Jamie Oliver veio ao Brasil exclusivamente para lançar sua parceria com Sadia: pratos congelados com carne de frango que terão que ser finalizados pelo comprador, o que a empresa e o chef parecem considerar enquadrar-se na categoria ‘cozinhar’ (“consumidores terão que aquecer molhos, assar ou mesmo selar a carne”, diz press release). Estive em sua coletiva de imprensa, em São Paulo: mais parecia um coquetel regado a conversas amenas. Curiosamente, não consegui emplacar as minhas questões, mesmo meu braço estando levantado a maior parte do tempo. Então enviei questionário para a assessoria de imprensa da marca, que demorou dez dias para devolvê-lo respondido. Você pode lê-lo completo AQUI.
Sentada ali, na frente de um Jamie Oliver visivelmente na defensiva, ficava mais e mais abismada diante de frases ditas por ele, que me soavam um tanto esquizofrênicas:
“Os maiores problemas do planeta em relação a alimentação são a fome, a obesidade e a resistência humana e animal a antibióticos” (mas conforme você pode ler no link do meu questionário, antibióticos podem ser usados nas aves da linha Jamie Oliver!) e
“É necessário trabalhar com grandes companhias para fazer grandes mudanças”.
Jura, Jamie Oliver? Posso te contar uma coisa: as grandes mudanças só ocorrem pela união dos PEQUENOS.
Só estamos assistindo o crescimento da oferta de orgânicos, por exemplo, porque cada cidadão que começa a consumi-los, seja por focar na saúde individual e/ou do planeta, estimula um agricultor a abandonar a agricultura convencional.
Só temos melhora nos padrões de bem estar animal porque as pessoas ‘comuns’ começam a se negar a consumir carnes, ovos e leites provenientes de criações insalubres.
Só vivemos em um tempo no qual megaempresas precisam fazer campanhas milionárias esclarecendo COMO produzem alimentos porque cada cidadão com poder de escolha e compra as pressiona para maior transparência. Grandes corporações não fazem grandes mudanças em prol dos pequenos, Jamie Oliver. Em prol do bem global. Grandes corporações só fazem mudanças porque precisam manter o lucro – e sabem muito bem com quem se associar para tal fim. Como disse Elisabetta Recine, coordenadora do Observatório de Segurança Alimentar e Políticas de Nutrição e professora de Nutrição da Universidade de Brasília, a um jornal inglês: “Jamie Oliver não fará a Sadia melhor, mas certamente a Sadia fará Jamie Oliver pior“.
Ainda estou esperando a resposta da Sadia ao meu pedido para conhecer suas granjas. A Seara atendeu-o prontamente, mesmo com todas as minhas exigências para que a visita fosse realizada: precisaria ser em uma granja padrão, mostrada na campanha publicitária; acesso irrestrito a todas as áreas; todas as questões respondidas por especialistas. E para minha surpresa, ninguém fugiu de questionamento algum. Meses depois, visitei um produtor sustentável e orgânico, a Korin, que rendeu reportagem que pode ser lida AQUI.
Para os odiadores profissionais, aviso: não foi excursão à Coreia do Norte. Não rolou – como um sem noção sugeriu no Facebook – granja maquiada especialmente para a minha visita: é estruturalmente inviável mover dezenas de milhares de galinhas para causar efeito positivo em UMA jornalista. O fato é: o que vi é a realidade cotidiana do setor. E, finalmente, tive minhas questões respondidas.
Aos que questionarem a razão de não haver fotos de outras partes do processo: é proibido por questões de segredo de indústria (tipo de maquinário e de linha de produção) e também para preservar a privacidade dos funcionários. Não gostei nada, claro – desejava mostrar tudo aqui – mas há que se seguir certas regras para tornar o trabalho possível.
Eis alguns dados sobre a produção de carne de frango no Brasil:
As empresas são proprietárias de todos os aviários?
Não. Elas trabalham no esquema de fornecimento de infraestrutura para milhares de pequenos e médios criadores: construção dos aviários, entrega de pintinhos, treinamento de pessoal, ração, vacinas, logística de transporte dos animais vivos para os abatedouros (estes, sim, próprios). Cada um deles assina contrato se comprometendo a seguir todas as regras preestabelecidas de criação e bem-estar anima em troca da compra total do lote de aves.
Hoje, no Brasil, a Seara mantém cerca de 9300 proprietários rurais cadastrados, o que soma 140 milhões de galinhas nos aviários. A marca é a maior exportadora brasileira da proteína, atendendo 150 países.
Quantas galinhas/frangos vivem por metro quadrado?
O adensamento médio é de 32 quilos por metro quadrado. Levando-se em conta que cada galinha atinge cerca de 1600 gramas, temos cerca de 20 aves por metro quadrado.
Não, não é lindo de se ver. Não é a cena idílica da criação caipira, com as galinhazinhas bicando o chão e comendo minhocas. A realidade: imensos galpões com temperatura e umidade controladas, nos quais entra luz solar apenas quando o clima externo está bom o suficiente para não jogar excesso de ar quente ou frio para dentro.
As aves comem, dormem e evacuam. Só. Não há poleiros – parte do comportamento natural das aves é se empoleirar – e todas ficam no mesmo nível, o tempo todo, sobre o que é chamado de cama de frango. Formada por casca de arroz, bagaço de cana, sabugo de milho e outros materiais vegetais, a cama de frango recebe os dejetos das aves, bem como os restos de ração que caem no chão. A cada ciclo de criação – cerca de 40 dias – ela é trocada. A antiga passa por processo de compostagem e vira adubo.
A criação brasileira de aves é considerada uma das melhores do mundo – tanto em bem estar animal quanto em leis sanitárias – e é, sem dúvida, consideravelmente melhor do que a americana (clique AQUI para ter uma ideia) e a da Comunidade Europeia, que permite adensamento de 42 quilos por metro quadrado.
Todas as aves tomam antibióticos e hormônios?
Hormônios são proibidos no Brasil, tanto para aves quanto para bois, suínos, ovelhas, cabras. Não há a possibilidade de nenhuma empresa LEGAL oferecer hormônios para animais de corte sem sofrer punições gravíssimas do MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento).
Agora, quanto a antibióticos… Sim, são legais. Contudo, seu uso vem decrescendo na última década. A razão é simples: o mercado externo – e agora também o interno – vê com péssimos olhos o aumento gritante da resistência humana e animal a antibióticos, justamente por conta do seu uso descontrolado. Super bactérias estão nascendo, levando a morte milhares de humanos e animais, todos os anos. Uma das grandes causas disto é… nossa comida, especialmente bois e aves.
Outros pontos que levam à diminuição do uso de antibióticos no Brasil: o alto valor da medicação; a melhora no bem-estar animal, que faz a vida dos bichos ser menos estressante, causando menos doenças, gerando menos necessidade de medição. Hoje em dia, simplesmente não fecharia a conta entupir galinhas de antibióticos porque a) o preço final do produtos seria bem maior e b) muitos países imporiam barreiras a importação, o que acarreta queda no faturamento (tendo em vista que mais de metade das vendas de aves da Seara é destinada a exportação, imagine o tamanho do problema).
Nos aviários que visitei, a média de uso de antibióticos nos ciclos mais recentes é de 1 galinha em cada 140. Mas é bom deixar claro que isso não traduz a realidade de todos. Muitos muitos muitos produtores ‘escondem’ os antibióticos por detrás dos termos ‘melhoradores de desempenho’ e ‘promotores de crescimento’.
Do que se alimentam?
Cerca de 70% da ração – servida à vontade – é composta por farinha de grãos como milho, trigo e soja. Claro, todos transgênicos e entupidos de pesticidas: o Brasil é o campeão mundial no uso de agrotóxicos. O que há nos outros 30%? Bom, aí a coisa complica… Há farinha de carne e ossos bovinos, por exemplo. Ao ver minha surpresa horrorizada com o fato, um dos funcionários da Seara fez questão de me lembrar que aves são onívora. Eu fiz questão de lembrá-lo que em nenhum momento da evolução galinhas comeram vacas… e que minhocas e insetos são ligeiramente diferentes de boi.
Contudo, acabemos com a lenda urbana de que há farinha de pintinhos mortos na ração das galinhas: não há. Bem porque foi algo parecido que desencadeou a doença da vaca louca – e ter um escândalo de proporções planetárias não é o que a indústria almeja.
Outra lenda urbana que vai pro ralo: não existe injeção de realçador de sabor nas aves.
As aves vivem sob luz 24 horas por dias para comerem mais e engordarem mais rápido?
Não. Pelo menos na que visitei, as luzes da granja são apagadas perto das 23hs e “acesas” na hora do nascer do sol.
O aquecimento – para o qual as lâmpadas também servem – é feito via injeção de ar quente no recinto. Esse ar quente é gerado em caldeira alimentada com madeira de reflorestamento. De novo, nas granjas que visitei: não tenho como saber e averiguar os processos cotidianos de todas.
Quanto tempo vive uma ave até ser abatida?
Os pintinhos chegam com um dia de vida ao aviário e permanecem ali até o trigésimo nono dia. Então, seguem para o abate. O aviário é limpo, a cama de frango é trocada e uma nova leva chega.
O que se faz com os ovos que as galinhas botam?
As galinhas não botam ovos nas granjas de corte porque não chegam a atingir a idade fértil para tal. Funciona assim:
– as “avós” (galinhas geneticamente selecionados) são importados dos EUA e da Inglaterra e ficam em granjas específicas até 25 semanas de vida, quanto estão prontas para reproduzir. Daí são enviadas para outro aviário para acasalar com galos selecionados.
– os ovos seguem para outra unidade (os incubatórios), na qual permanecem em ambiente de condições controladas. Após 21 dias, eclodem e, imediatamente, os pintinhos são levados para aviários voltados para o abate.
Há muita mortandade no transporte dos animais vivos até o abatedouro?
Há mortalidade, claro. Mas, de novo, não seria financeiramente interessante se houvesse muita. Todo o processo de transporte é rastreado via satélite e agendado para ter o menor tempo possível entre a colocação das aves nas caixas e seu abate – o que não quer dizer que seja bacanão, afinal os animais ficam apinhados em caixas cheias, a mercê do clima, o que está longe de ser o ideal. A razão do tempo curto transporte-abate: diversas pesquisas indicam que quanto menor for esse intervalo, e menos estresse animal houver, melhor será a qualidade da carne.
Para saber mais sobre o assunto, conheça a comissão de bem-estar anima do MAPA clicando AQUI.
Como é o abate?
Não existe matar galinha com espuma tóxica: taí outra lenda urbana. Essa prática só rola quando um lote de aves é infectado por doenças contagiosas, como a gripe aviária, e precisa ser esterilizado. A única maneira legal no Brasil para se abater aves é a desensibilização por corrente elétrica, como você pode ler AQUI.
As aves são penduradas em ganchos, pelos pés, e tem a cabeça mergulhada em água pela qual passa corrente elétrica alta suficiente para desacordá-la e baixa o bastante para não causar danos irreversíveis (hematomas ou morte). “Desmaiada”, tem o pescoço cortado, segue para a sangria, para a depenagem em água fervendo e para a retirada dos órgãos internos por uma mão mecânica.
Cada carcaça – com seus devidos orgãos colocados logo acima delas, numa grande linha de produção circular – é verificada por funcionários do SIF (Serviço de Inspeção Federal, órgão do Ministério da Agricultura), que procuram por sinais de bile, doenças e anomalias. Em cada fábrica há uma área demarcada para estes funcionários, com os quais os proprietários (Sadia, Seara, etc) não podem interagir – a única pessoa autorizada a fazer a interface entre o SIF e a granja é um supervisor. A medida foi estabelecida como maneira de evitar possíveis fraudes e subornos.
O que se faz com toda a pena e sangue gerados no abate?
Aqui o negócio não é bonito, não. Nada bonito.
O plasma do sangue é comprado pela indústria alimentícia – inclusive a de comida hospitalar – e de ração para animais domésticos como palatabilizante, ou seja, para tornar os sabores mais vivos.
Plasma é o produto obtido do sangue fresco integral, seco por pulverização (spray-drying), o qual foi previamente separado de suas células vermelhas e brancas por meio de processo químico e mecânico. A proteína contida no plasma é formada principalmente por albumina, globulina e fibrinogênio. O resto do sangue é seco e vai parar… em ração de animais, tanto de estimação quanto de corte (caso do porco).
As penas são transformadas em farinha e seguem para a indústria de ração de animais domésticos e de… peixes.
Para saber mais sobre o tema, clique AQUI
Há diferença na criação de animais para consumo interno e exportação?
Não: toda a criação e processamento são unificados. Assim que as aves são desmembradas, suas partes passam por supercongelamento e seguem para mercados distintos, com perfis diferentes de consumo. O Japão, por exemplo, compra a maior parte da pele; a China, os pés.
Os maiores compradores de frango brasileiro são a Arábia Saudita, o Japão e a China. Cerca de 40% da carne exportada no mundo tem origem no Brasil e em 2018/2019, as exportações de carne de frango deverão representar 90% do comércio mundial.
Qual é o número de aves abatidas por dia?
É chocante a quantidade de proteína animal que se consome no mundo, além de ser algo totalmente insustentável: não há recursos naturais suficientes para suprir o apetite crescente por carne, queijo e ovos. Se, atualmente, mais de 1/3 dos grãos produzidos no mundo já vão para alimentação animal (imagine a quantidade de terra, de água, de pesticidas!), tente vislumbrar o cenário caso todos os habitante do globo queiram comer carne como brasileiros ou americanos. Seria o colapso ambiental. Querendo saber mais, dê uma olhada AQUI
Estes números do mercado de aves me deixaram boquiaberta:
– 5.600.000 aves abatidas por dia no Brasil – isso contando APENAS A SEARA
– 450 milhões de aves abatidas por mês no Brasil – total da indústria
– 140 milhões de frangos alojados nos aviários parceiros da Seara
– Brasileiro médio consome cerca de 50 quilos/ano
– Em 2015 foram processadas 13,146 milhões de toneladas de frango no Brasil
Quer dizer que a Seara é fofa e linda, por isso abriu a produção para visita?
Não, é apenas uma empresa que entende o óbvio: não dá mais pra omitir ou mentir para o consumidor. As corporações podem até apostar na vitória da ignorância ou da publicidade truqueira, mas o fato é que cada vez mais gente quer a verdade e irá atrás dela.
Se há espaço para melhora? Opa, e como. Quem determinará o quanto, e a que velocidade, somos nós, os consumidores.
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