Leite, manteiga, creme de leite, chantilly, iogurte, requeijão, queijo.
Consumimos toneladas de lácteos, diariamente, do café da manhã ao jantar, sem sequer parar para pensar em como todo esse leite é produzido. Como essas vacas/ovelhas/cabras são criadas, se vivem soltas ou confinadas, do que se alimentam, se recebem hormônios, o que acontece com suas crias após o nascimento.
Assim como os demais alimentos derivados de animais – ovos e carne -, simplesmente comemos, como se eles aparecessem magicamente na prateleira do mercado, embalados, porcionados e totalmente desconectados com o ser que os deu origem.
Durante dois meses, visitei algumas fazendas de gado leiteiro nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro: Laticínios Gióia, em Americana, Pardinho Artesanal, em Pardinho, e cooperativa que abastece as marcas Vitalatte e Yorgus, em Valença. Como sempre, as que abrem as portas são aquelas que empregam métodos mais sustentáveis e sensatos de produção: quando a realidade é feia, não se quer jornalista por perto…
A idéia era conhecer o processo para o vídeo acima, focado em produção de queijo – parte do meu canal de jornalismo gastronômico no Youtube, o #ptdk – mas acabou sendo uma descoberta sobre os métodos nada agradáveis da indústria leiteira para com seus consumidores e animais.
Vamos por partes, por que o assunto é complexo. Abaixo, você encontrará respostas para as perguntas mais comuns quando se trata de leite e queijo no Brasil.
Quantas vacas leiteiras existem no país?
Em 2015, o número total de vacas ordenhadas no Brasil atingiu 21,75 milhões de cabeças; a produção de leite de cabra e ovelha, somadas, representam apenas 1,6% do total nacional. Minas Gerais segue sendo o principal produtor de leite (em 2014, 9,37 bilhões de litros), com 77% de toda a produção da Região Sudeste e 26,6% do total nacional (Fonte: Milkpoint)
Quantos litros de leite uma vaca produz por dia?
A quantidade média de leite produzido por vaca, diariamente, varia grandemente com a raça e idade do animal. Enquanto uma Holandesa pode dar até 42 litros/dia, a Jersey fica em torno de 24 litros/dia. Bom esclarecer que a raça do animal, sua alimentação e bem estar (ou não) refletem diretamente na qualidade e sabor do leite que produz. A lei da natureza “você é o que come” não funciona somente para humanos.
Quantos litros de leite são necessários para produzir queijo, iogurte e manteiga?
- Para cada quilo de queijo fresco de vaca são necessários, em média, 5 litros de leite; para os curados, 10 litros.
- Para cada quilo de queijo fresco de cabra são necessários, em média, 4,5 litros de leite; para os curados, 8 litros.
- Para cada quilo de queijo fresco de ovelha são necessários, em média, 3,5 litros de leite; para os curados, 5,5 litros.
- Para cada 1 quilo de iogurte grego são necessários 4 litros de leite.
- Para cada 1 quilo de manteiga são necessário cerca de 20 litros de leite.
Como é feita a ordenha?
Grande parte da ordenha no Brasil é mecanizada. O aparelho funciona por sucção – cuja intensidade é controlada para evitar que machuque o teto da vaca, provocando mastite, inflamação que pode ser tornar grave, generalizada e afetar a vida do animal – com terminais acoplados em cada teto. Correndo por canos, o leite vai direto para um resfriador ou recipiente fechado, sem nenhum contato com o ar, a fim de evitar contaminações e preservar sua qualidade.
Como a vaca pode evacuar pouco antes ou durante a ordenha, os produtores sérios fazem higienizações em cada teto, com antibactericida, antes e depois da ordenha, como forma de diminuir a contaminação do leite por coliformes fecais. Mas a realidade em não-tão-cuidadosos-produtores ainda inclui ordenha manual ou mecanizada com excesso de força, sem higienização e armazenamento do leite em baldes ou recipientes não refrigerados. E o sendo o leite um alimento altamente perecível, o que fazer para aumentar a vida dele nestas condições? Resposta, abaixo.
É verdade que alguns fazendeiros ‘batizam’ o leite com formol?
É. Ainda é. E com ureia, soda cáustica e água oxigenada, também (fonte: Veja).
Há apenas quatro anos, oito pessoas foram presas na Operação Leite Compensado, que apurava a adulteração de leite por cinco empresas de transporte no Rio Grande do Sul. “As investigações, feitas pelas promotorias de Justiça Especializada Criminal e de Defesa do Consumidor da Capital em conjunto com o Mapa, apuraram que as empresas de transporte de leite adulteraram o produto cru entregue para a indústria. Uma das formas identificadas é a da adição de uma substância semelhante à ureia e que possui formol em sua composição. A adulteração é considerada crime hediondo de corrupção de produtos alimentícios, previsto no artigo 272 do Código Penal.” (Fonte: Isto É)
Isso acontece porque as grandes marcas trabalham com milhares de pequenos produtores a fim de ter volume para produzir todo seu queijo, iogurte, leite de caixinha, etc. O recolhimento desse leite é feito apenas em alguns dias da semana, enquanto a ordenha é realizada todos os dias. Aqueles que não tem infraestrutura de refrigeração, para não perderem dinheiro, adicionam químicos que prolongam a vida do leite – mas não fazem o mesmo com quem o consome…
“Após a denúncia da presença de formol no leite adulterado por transportadores no Rio Grande do Sul, feita após investigação da Operação Leite Compensado, do Ministério da Agricultura, autoridades de saúde voltam a fazer o alerta sobre o contato ou uso contínuo da substância pela população, o que traz uma série de prejuízos à saúde, entre eles a pneumonia química e até tumores. Atualmente, há normatização específica que limita a concentração do formol em vários produtos que o utilizam em seu processo de fabricação – a maioria deles cosméticos –, mas procedimentos de beleza como as técnicas de alisamento, proibidas pela Agência Nacional da Vigilância Sanitária (Anvisa) por não respeitar a concentração máxima, ainda são correntes no país” (Fonte: Gazeta do Povo). O químico que alisa cabelo pode estar no seu leite e queijo. Que animador, não?
Quantas vezes são ordenhadas por dia?
Fazendeiros sensatos ordenham duas vezes, sempre respeitando o limite de litragem de cada vaca, que varia com idade, peso, constituição física, etc. Criadores que tratam animais como coisas ordenham até quatro, prejudicando a saúde do bicho e aumentando violentamente a probabilidade de mastite.
O que acontece com os bezerros após o nascimento?
Aqui, na grande parte da indústria, o negócio não é nada bonito, especialmente para quem já viu uma vaca em desespero por ser afastada de sua cria.
Citando texto do site Rural Centro : “O comportamento dos animais é previsível após a separação e pode ser detectado durante semanas após a desmama. Vacas e bezerros permanecem vocalizando repetidamente, passam mais tempo caminhando, ficando menos tempo se alimentando, ruminando e descansando. Essas alterações de comportamento evidenciam que o método tradicional de aparte traz consequências negativas sobre o bem-estar animal.”
Para a indústria, bezerros são apenas perda de leite. E, sendo assim, são alimentados com mamadeiras até a idade em que irão para engorda (machos) ou se juntarão ao rebanho leiteiro (fêmeas). O trato mais comum é este: “Depois do parto, a vaca passa até 24 horas com o bezerro, que é, então, apartado, passando a ser manejada junto às vacas em lactação. Se o rebanho estiver dividido em lotes, para alimentação diferenciada conforme a produção, a fêmea primípara, ou seja, que pariu pela primeira vez, receberá a mesma alimentação do grupo de maior produção”. (Fonte: CPT)
Mas há, sim, quem queira lucro associado a bem estar animal e decência. Na Pardinho, por exemplo, os bezerros ficam até os seis meses com a mãe, mamando livremente em um teto enquanto os outros estão sendo ordenhados. E não é à toa: “Estudo da Embrapa Gado de Corte (CNPGC – Centro Nacional de Pesquisa em Gado de Corte) aponta que vacas e bezerros ficam mais tranquilos, desde os primeiros dias, quando são colocados lado a lado, separados apenas por uma cerca resistente, mantendo o contato visual. Uma pesquisa realizada pela Universidade da Califórnia-Davis descobriu que bezerros manejados assim chegam a ganhar até 30% mais peso nas 10 semanas subsequentes à desmama do que aqueles que foram manejados de forma tradicional” (Fonte: Rural Centro)
São criadas soltas ou confinadas?
Tradicionalmente, soltas, no pasto, com alimentação complementada por grãos. Atualmente, infelizmente, a criação em confinamento está crescendo porque ‘dá mais lucro’. Boa parte desse aumento se deve a predileção nacional por vacas Holandesas. Grandes produtoras de leite, as holandesas são originárias de países frios e montanhosos, sendo perfeitamente adaptadas a baixas temperaturas e altitude.
Imagine uma holandesa sendo criada no Chapadão, em Goiás, no verão de 39 graus. Sofrimento certo. Morte muito provável. Mas o que fazer, então? Enfiar centenas de holandesas em baias dispostas dentro de imensos galpões munidos com ventiladores e sprays de água, totalmente fora de seu habitat, sem acesso a área externa.
Mas, de novo, há um esforço por parte de fazendeiros sensatos em desenvolver uma raça híbrida, menor, mais forte e adaptada ao clima das diversas regiões brasileiras. Porque animais adaptados tem menos doenças, precisam de menos medicamento e manejo e, a médio prazo, dão mais lucro.
Quanto tempo vive uma vaca leiteira?
Entre 6 e 10 anos. Então, são ‘descartadas’, o termo técnico que designa o abate (ou seja, viram ‘carne de segunda’ por terem músculos mais firmes por conta da idade). “O descarte involuntário é aquele em que as vacas são abatidas por problemas de mastite, problemas de pé e pernas, reprodutivos, problemas de úbere, acidentes (traumatismos). Atualmente se faz necessário um trabalho de seleção, visando primeiro as doenças do rebanho como a brucelose, a tuberculose e doenças da reprodução.
Os descartes por problemas reprodutivos sugerem animais mais velhos e evidencia tentativas do produtor resolver este tipo de problema. O descarte de vacas com elevados intervalos entre partos causados por restrição alimentar ou deficiência deve ser evitado. Por condições de alimentação e mineralização inadequadas e de certas doenças, pode ocorrer retenção de placenta e repetição de cio. O descarte por problemas reprodutivos melhora o rebanho a cada geração. Novilhas tardias com dificuldade de emprenhar devem ser descartadas rigorosamente.” (Fonte: Nutroeste)
Vacas leiteiras podem, por lei, receber hormônios?
Sim, diversos. Especialmente para aumentar o volume e tempo de lactação. Os principais são Somatotropina bovina (bST) – ou hormônio de crescimento, o GH -, Prostaglandina, Progesterona, Ocitocina, Estrógeno. (Fonte: PROTOCOLO DE INDUÇÃO DE LACTAÇÃO PARA VACAS HOLANDESAS).
A somatotropina bovina recombinante é um hormônio feito em laboratório, por meio de técnica de DNA, produzido em escala industrial. Claro que os produtores dizem que não passa pro leite, que não tem problemas para humanos, blablabla. Claro. Contudo, há cinco anos, o Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma ação questionando a segurança do produto e pedia que a Anvisa regulamentasse a publicidade nas embalagens de leite e carne originários de animais tratados com o BST. Segundo o MPF ‘Em animais, o anabolizante comprovadamente aumenta os casos de mastite (inflamação nos úberes), de inflamações diversas e consequentemente o uso de antibióticos. Em humanos, pode estar relacionado a casos de câncer, diabetes e surgimento de cepas de bactérias resistentes”. Mas, curiosamente, o pedido foi rapidamente arquivado pela AGU, Advocacia Geral da União.
Vários países já proibiram o uso de somatotropina bovina recombinante, caso do Canadá e da União Européia.
E antibióticos?
Sim, os mesmos dados para o gado de corte. Contudo, para a produção de iogurte e queijo, há uma questão técnica que inibe o uso excessivo de antibióticos: na presença deles, o leite não fermenta.”Sendo o antibiótico um agente antimicrobiano de grande eficácia, sua ação não se restringe apenas ao tratamento da enfermidade, levando a inibição de bactérias lácteas, utilizadas nas mais diversas tecnologias de uma indústria de laticínios. O efeito direto é a inibição da flora láctea empregada na produção de produtos fermentados como iogurtes, leites fermentados e queijos”. (Fonte: Queijos no Brasil)
Empresas sérias, como a Vitalatte e Yorgus, fazem análises diárias de amostras de leite de cada produtor com o qual trabalham, descartam qualquer lote com irregularidades (incluindo aí resquícios de antibióticos) e remuneram melhor aqueles que atingem os resultados mais baixos de presença de coliformes.
Qual a diferença entre coalho e fermento lácteo?
Coalho é uma substância que promove a coagulação do leite, o primeiro estágio de qualquer queijo e iogurte. Há Coalhos de Origem Animal (enzima retirada do suco gástrico de bezerros na hora do abate), Coalhos pepsínicos (enzima retirada do suco gástrico de bovinos adultos na hora do abate), Coalhos vegetais (como papaína, bromelina e extrato de Cynara cardunculos) e Coalhos microbianos (culturas de bactérias e fungos). Fonte: Agronegocios
Fermento lácteo é uma concentração específica de bactérias – há milhares delas – que proporcionam à massa coalhada determinadas características aromáticas, gustativas e de textura.
É possível fazer queijo sem fermento lácteo?
Sim, os queijos frescos (ou frescal) não levam.
Qual a diferença entre os queijos de leite cru, de leite pasteurizado e processado?
Queijos de leite cru são aqueles preparados à partir do leite não-pasteurizado. Tendem a ser mais complexos em aroma e sabor por conterem todos os microorganismos do produto original. No Brasil, a lei permite a venda de queijos de leite cru com cura mínima de 60 dias. “Os 60 dias estariam associados ao fato de que esse tempo de maturação seria suficiente para eliminar contaminações microbiológicas, entre elas as ocasionadas por Escherichia coli, Salmonela, Staphylococcus aureus e Listeria monocytogenes, além das zoonoses tuberculose e brucelose. Entretanto, segundo as autoras, trata-se de uma exigência definida de modo arbitrário e a partir de poucas evidências científicas, na metade do século passado nos Estados Unidos.“ (Fonte: Ciência do Leite)
Queijos de leite pasteurizado são os que levam leite aquecido entre 63 e 75 graus, seguido de resfriação, o que mata 99% dos microorganismos potencialmente perigosos a saúde humana (e também toda a complexidade do produto). A grande maioria dos queijos brasileiros pertence a este grupo.
Queijos processados, ou fundidos, são produzidos à partir de leite pasteurizado e, então, derretidos e misturados a emulsificantes.
Segundo o Ministério da Agricultura, “entende-se por Queijo Processado o produto obtido por trituração, mistura, fusão e emulsão por meio de calor e agentes emulsionantes de uma ou mais variedades de queijo, com ou sem adição de outros produtos lácteos e/ou sólidos de origem láctea e ou especiarias, condimentos ou outras substâncias alimentícias, no qual o queijo constitui o ingrediente lácteo utilizado como matéria prima preponderante na base láctea.
2.1.2. Queijo Processado U.H.T (U.A.T.):Entende-se por Queijo Processado U.H.T (UAT), o produto definido em 2.1.1. submetido, após a fusão, a tratamento térmico de 135 – 145ºC durante 5 a 10 segundos ou qualquer outra combinação de tempo/temperatura equivalente”.
É o que eu chamo de ‘queijo de plástico’.
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