Comparada a outras produções de derivados animais para consumo humano – carne e leite -, eu pensava que a de ovos era a mais tranquila no tocante a bem estar animal. Por que, afinal, não existe abate.
Não poderia estar mais equivocada.
Após visitar algumas granjas (orgânicas) e entrevistar profissionais do meio, constatei que não só a produção convencional de ovos é uma das mais cruéis com os bichos, como também é a que fornece um dos alimentos menos saudáveis para o consumidor: não há como uma ave que vive durante um ano e meio numa gaiola menor do que uma folha de sulfite, tomando antibiótico, sofrendo mutilação e comendo ração cheia de pesticida possa produzir um ovo saudável. Não consigo chamar isso de alimento.
Acima, você pode assistir o novo vídeo do Vai Se Food, nosso canal de jornalismo gastronômico no YouTube, sobre o assunto. Filmado na produção orgânica da Yamaguishi, mostra como é o paraíso das galinhas, bem diferente da realidade de 99,9% do mercado.
O levantamento feito pela Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA) apontou a produção de 4,2 bilhões de dúzias em 2017. O alojamento de aves poedeiras chegou a 92,2 milhões de cabeças e o consumo de ovos obteve média de 191,7 unidades per capita. Isso significa que estamos comendo ovos feito loucos, ainda mais agora que a ciência o liberou do rótulo de “vilão” da saúde.
Malhadores se entopem de claras.
Confeiteiros amam gemas.
Todos gostam de bolos e sorvetes.
Há os maníacos por ovos mexidos, fritos de gema mole, pochê, omeletes.
Mas o que quase raramente fazemos é perguntar da onde vem esses ovos, qual o estado de saúde dos animais que o botam. Como um alimento proveniente de um bicho de vida miserável pode ser bom para quem consome? A resposta é: não pode. Por isso é tão importante conhecer o que há por trás daquilo que comemos – só assim nossas escolhas serão conscientes,
Não há nada de legal em dizer “prefiro não saber” e virar a cabeça pro lado, mudar de assunto: ignorância nunca é bonita. NUNCA traz nenhuma mudança positiva.
Daí, eu te pergunto: você anda comendo o quê?
Vou começar essa reportagem por três pontos que considero os mais absurdos, doentios e inaceitáveis: o cruel fim dos pintinhos machos, a vida miserável e (por consequência disso) a debicagem.
Pintinhos machos: horrível fim
Tanto as granjas de frango de corte quanto as de ovos compram “pintinhos de um dia” para popular a criação. Há empresas especializadas nesse segmento, dedicadas a melhoramento genético e reprodução. Para maximizar a produção, há duas vertentes de melhoramento: aves que resultem em corpos com mais carne e aves que coloquem mais ovos.
A linhagem de aves voltada para carne usa tanto machos quanto fêmeas – as granjas de corte tem galinhas e frangos. Por motivos óbvios, as granjas de poedeiras só trabalham com fêmeas. O que se faz, então, com os pintinhos machos nascidos da linhagem direcionada às granjas de galinhas poedeiras (cerca de 50% dos nascimentos, visto que a taxa de natalidade entre os sexos é praticamente igual)?
São mortos no dia seguinte ao nascimento.
Não, não vão para a granja de galinhas de corte, porque sua genética não “é boa” para carne. Não cresceriam o suficiente, não engordariam o suficiente no tempo necessário e não dariam dinheiro o suficiente.
Como não há legislação específica de bem estar animal para o “descarte”, há algumas possibilidades de morte para os pintinhos na hora da sexagem, momento no qual se determina o sexo:
– São jogados em grandes galões nos quais morrem asfixiados e/ou amassados pelo peso uns dos outros
– São direcionados por esteira até uma sala no qual vão, VIVOS, para um moedor. Ainda não é comum encontrar produtores que usem gás para desacordá-los.
O destino final de todos é serem transformados em “farinha de aves”, presente em praticamente todas as rações para gatos e cachorros. Sendo forte e querendo VER como isso acontece, clique AQUI.
Para evitar esse fim horrendo dos pintinhos machos da linhagem de poedeiras, a Korin está desenvolvendo um trabalho de pesquisa a fim de criar genética que possa tanto ser usada para obter carne quanto para colocar ovos. Desejo todo o apoio financeiro para esse trabalho. Mesmo.
Enviei uma série de emails pedindo para entrevistar algum responsável pela Mercoaves – empresa do segmento de pintinhos de um dia – mas não obtive nenhum retorno.
Engaioladas, empilhadas e sem nem abrir as asas
“2ª fase (recria): Dimensões mais usuais de gaiolas: 0,5 x 0,5 x 0,4 m3 (8 aves/gaiola); 1,2 x 0,6 x 0,4 m3 (20 aves/gaiola); 1,0 x 0,6 x 0,4 m3 (16 aves/gaiola), havendo outras dimensões de gaiola. Duração desta fase: 11 semanas aproximadamente.
3ª fase (postura): Dimensões mais usuais de gaiola: 0,25 x 0,4 x 0,4 m3 (2 aves/gaiola); 0,3 x 0,4 x 0,4 m3 (3 aves/gaiola); 0,25 x 0,45 x 0,40 m3 (3 aves/gaiola); 0,25 x 0,50 x 0,38 m3 (3 aves/gaiola), havendo outras dimensões de gaiola. Duração desta fase: 55 a 57 semanas.”
Estas são as diretrizes oficiais para criação de galinhas poedeiras – e a realidade disso é como mostra a foto abaixo.
Como diz o especialista em aves, Romeu Mattos Leite no vídeo acima, a galinha no sistema convencional vive por cerca de 18 meses (ou menos; o que determinará seu abate para virar farinha de aves é a produtividade, ou quantos ovos bota) em um gaiola com “espaço do tamanho de uma capa de CD, sem poder abrir as asas ou dar uma volta em torno do próprio eixo”. Ali, seus dias são comer, evacuar e botar ovos com as patas em contato direto com as grades da gaiola: em muitas não há nem um piso nivelador. Continuo não achando que um animal tratado dessa forma possa produzir/ser um alimento saudável.
As dimensões minúsculas servem tanto para empilhar mais animais por metro quadrado quanto para economizar comida, visto que um bicho que não se mexe não consome energia.
“Em gaiolas (ou baterias), as galinhas começam a botar com 4 meses e tem vida produtiva até os 18 meses: são cerca de 400 ovos no período. No sistema orgânico, começam com 6 meses e produzem até os 27 meses, num total de até 650 ovos. Como a galinha no sistema orgânico é criada solta e se exercita mais, gasta mais energia e precisa de mais ração – come cerca de 20% a mais que as de gaiola”, explica Romeu.
Estresse: bicos cortados para não se matarem
“A debicagem deve ser feita para manter a uniformidade do lote, além de prevenir o canibalismo e evitar o desperdício de ração. Esta deve ser realizada primeiramente entre 7 e 10 dias de idade, aproveitando o fato de que as pintinhas estão no círculo de proteção o que facilita apanhá-las. Uma segunda debicagem deve ser feita entre 10 e 12 semanas, em condições normais de criação. Na primeira debicagem retira-se 1/3 do bico, enquanto que no segundo corte deve ser realizado de forma que o bico superior fique com um comprimento entre 5 e 6 mm à partir das narinas.”
Esse trecho, escrito por veterinários e zootécnicos, foi retirado de uma cartilha para produtores de aves. É um procedimento padrão em galinhas poedeiras criadas em gaiolas – lembrando que correspondem a 99,9% dos ovos encontrados no mercado – a fim de evitar que biquem umas às outras. E elas se bicam, chegando a matar a ‘vizinha’, como decorrência de uma existência massacrante e antinatural: nenhum animal nasceu para viver sem poder ao menos se levantar.
Essa amputação, tida como normalíssima no Brasil, já é proibida em vários países por ser considerada mutilação e expor o bicho a dores constantes. “Na Europa, o uso de gaiolas de bateria não é mais permitido e a debicagem com lâmina quente também é proibida na maioria dos países”, disse Lizie Buss. coordenadora da Comissão de Bem-Estar Animal (CTBEA) do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Mas aqui, em vez de melhorar o bem estar animal – e, com isso, a qualidade do alimento ofertado a população – preferimos decepar uma parte do bico. É como resolver uma ferida na mão cortando o antebraço….
Ovo convencional, orgânico e caipira: diferenças
O ovo convencional é proveniente de granjas que trabalham com o sistema de baterias (explicado acima), as galinhas vivem cerca de um ano e meio em gaiolas, tomam diversas doses de antibióticos – o que desencadeia o aparecimento de superbactérias -, tem o bico cortado, comem apenas ração composta majoritariamente por soja, milho, vitaminas e minerais (que devido a pobreza dos itens naturais, precisam ser adicionados), não existe a presença de galos e quando param de produzir no seu ápice, são abatidas para virar farinha de ave.
Na ração pode existir: trigo BR-33, trigo IAPAR-53, triticale BR-4, triticale BR-2, soja extrusada, farelo de trigo, milho BR-473, gérmen de milho (subproduto obtido após a extração do óleo do gérmen) tortas de canola e de soja (subprodutos obtidos após a extração do óleo por processo mecânico), levedura spray-dried (subproduto seco obtido após o processo fermentativo utilizado na destilaria de álcool), proteína bruta (PB), energia bruta (EB), matéria seca (MS) extrato etéreo (EE), fibra bruta (EB), matéria mineral (MM), cálcio (Ca), fósforo total (P), cobre (Cu), ferro (Fe), manganês (Mn), zinco (Zn), lisina (Lys), histidina (His), arginina (Arg), treonina (Thr), serina (Ser), glicina (Gly), cisteína (Cys), valina (Val), metionina (Met), isoleucina (Ile), leucina (Leu), tirosina (Tyr), fenilalanina (Phe) e triptofano (Trp).”
No ovo caipira, as galinhas precisam ser de linhagem exclusiva para esse fim, criadas em sistema livre de gaiolas e com acesso a áreas externas e sol. Não existe debicagem. São alimentadas com ração constituída por ingredientes preferencialmente de origem vegetal (além de insetos, minhocas e pequenos répteis), sendo proibido o uso de antibiótico. Apenas linhagens ou raças de aves de crescimento lento (superior a 70 dias) serão aceitas com esta denominação.
No ovo orgânico, as galinhas são criadas soltas, com acesso irrestrito à área externa, alimentado-se de ração de grãos orgânicos (dieta que pode ser complementada por de frutas, legumes e verduras orgânicos), sem uso de antibióticos e sem debicagem. É possível haver a presença de galos para que manifestem seu comportamento natural.
Ovo galado, ovo vermelho, ovo branco, ovo cinza…
Não há a necessidade da presença de galos para produzir ovos.
Para facilitar: ovos (mais especificamente, a gema) são óvulos da galinha que, todos os dias, expele um de seu corpo. Ovos galados são aqueles gerados por galinhas que acasalam com galos: acredito terem muito mais energia vital (dado não confirmado ou negado pela ciência), mas duram muito menos e precisam permanecer o tempo todo sob refrigeração. São vivos – e como tudo o que é vivo, são mais perecíveis.
A cor dos ovos está atrelada a cor das penas e linhagem das galinhas. Ovos vermelhos vem de galinhas vermelhas e ovos brancos, de galinhas brancas. O ovo vermelho (ou marrom), não é mais ou menos rico nutricionalmente do que um ovo branco: tudo depende do TIPO de produção. Também é possível encontrar ovos azuis, pretos ou acinzentados: a cor não faz diferença nenhuma na qualidade do ovo.
Bom ressaltar que a cor da gema só indica a saúde da galinha nos casos da caipira e da orgânica, que tem dieta rica e são livres de antibióticos: a cor alaranjada da gema dos ovos convencionais é obtida pela adição de um corante na comida, conhecido por Xamacol.
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