A primeira vez que ouvi falar em almadraba foi há pouco tempo. Ano passado, para ser exata, quando lia o (excelente) livro do chef Dan Barber, O Terceiro Prato. Bastaram algumas páginas para que eu ficasse fascinada por essa técnica antiquíssima de pesca de atum, criada há cerca de 3 mil anos pelos fenícios e aprimorada pelos árabes, na costa de Cádiz, na Espanha. Jamais imaginaria que apenas dez meses depois eu estaria ali, num barco, observando-a de perto. Mas estava – e foi incrível.
Milenar, sustentável, artesanal, profundamente enraizada na estrutura da sociedade local – diversos povoados vivem dela há centenas de anos, passando ensinamentos de pai para filho, montando as redes por dois meses, pescando por outros dois meses e desmontando tudo no final de julho – a almadraba é um exemplo de como o homem pode e deve(ria) viver em harmonia com a natureza, mesmo retirando dela o que deseja. No caso, a valiosíssima carne do atun rojo, atum vermelho ou BlueFin (Thunnus Thynnus).
É importantíssimo dizer que os atuns – todas as diversas espécies – estão caminhando para extinção pela culpa do apetite insaciável por sashimis, temakis, tartares e afins. Para atender a demanda crescente e cega, a pesca industrial, legal e pirata, retirou/retira quantidades assombrosas de peixes nas últimas três décadas, resultando numa grave diminuição da população marinha global, impactando também a da almadraba (que representa menos de DOIS POR CENTO da pesca de atum no planeta).
Para tentar reverter esse quadro, instalou-se na Espanha, há cerca de dez anos, uma política de cotas, que estabelece limite máximo de retirada de atum/ano (em 2016, foi de mil toneladas). É seriamente fiscalizada e as multas, no caso de infração, pesadas. Bateu a meta? Todos os atuns que permanecem nas redes são liberados e seguem seu rumo.
Restringir para não destruir.
Os resultados já são motivo de comemoração.
A almadraba é composta por quilômetros de labirintos de redes presas do fundo do mar até a superfície, a cerca 900 metros da costa, com buracos grandes o bastante para que todos os peixes passem por eles, exceto atuns vermelhos com mais de 80 quilos – peso mínimo permitido para abate nas almadrabas. Eles entram na almadraba para fugir de seus predadores, as orcas, enquanto migram do Atlântico para o Mediterrâneo, através do Estreito de Gibraltar, em busca de águas mais quentes. Em final de abril, maio e começo de junho, meses do ano no qual é realizada, os peixes estão no auge de seu peso: acumularam gordura para enfrentar o inverno.
Como se vê, é pesca seletiva: nenhum peixe pequeno é capturado. Nenhuma outra espécie é capturada. Nas redes da almadraba – que formam corredores no mar, levando os peixes para imensas ‘piscinas’ nas quais esperam o abate – só ficam presos espécimes com peso acima de 80 quilos e idade média de 10 anos (o bluefin chega a atingir 200 quilos e viver 25 anos). A média de peso/peixe de captura na almadraba é de 150 quilos: os almadraberos preferem esperar o animal atingir o seu melhor. Para se ter uma base de comparação, a regulamentação internacional permite retirada de atuns com 30 kg e cerca de 4 anos, o começo de sua idade fértil.
Em contraponto, o cenário atual de pesca é esse:
“Ao longo dos últimos 60 anos, começamos a tirar peixes demais do mar, mais do que quadruplicando a pesca anual, de 19 milhões de toneladas, em 1950, para 87 milhões de toneladas, em 2005. Simplificando, estamos tirando peixes do oceano mais rápido do que eles conseguem se reproduzir. O resultado é que 85% dos estoques de peixe do mundo agora são considerados como plenamente explorados, superexplorados, esvaziados ou se recuperando de esvaziamento” (Dan Barber, em o Terceiro Prato).
Voltando a almadraba: uma das cenas mais comentadas por quem já viu documentários ou fotos é a da matança. Nada bonita, mesmo. O mar é tingido de vermelho pelo espesso sangue dos atuns. A boa notícia é que depois de três milênios, a forma de abate mudou: desde o ano passado, as almadrabas de Cádiz não mais cortam ou batem na cabeça dos animais. Agora a morte é por tiro com cápsula de ar comprimido, direto no crânio do peixe, disparado por mergulhadores. Além de abater instantaneamente, esse método evita também a perda de sangue e que o atum se debata e ‘machuque’ a carne, marcando o lugar com hematomas e derrubando o preço de venda que, na Espanha, pode atingir 3 mil euros pelo bicho inteiro (e quando chegam no Japão, são revendidos a mais de 200 mil euros…).
O processamento é imediato: ou é congelado no barco e segue para o comprador internacional ou vai para uma das poucas empresas licenciadas a lidar com o atum de almadraba – Gadira e Petaca Chico são duas delas. Nas fábricas são feitos os vários cortes, salmouras e toda espécie de preparo com as partes do animal, como carnes da cabeça, barbatanas, ovas e intestinos. A razão de haver poucas empresas nesse setor? Para evitar ‘falsificação’ de atum de almadraba: se não vier das licenciadas, é fake.
Mais da metade da produção das almadrabas de Barbate, Zahara de los Atunes, Conil de la Frontera e Tarifa vai para o Japão, o maior comprador, e o restante fica na Espanha. Por conta do domínio da técnica de supercongelamento, a temperaturas que alcançam -60 graus, é possível encontrar atum rojo selvaje de almadraba durante todo o ano nos bares e restaurantes da costa de Cádiz. A cidade de Conil, inclusive, faz a Rota Gastronômica do Atum. Em sua XXI edição, reúne dezenas de bares e restaurantes que disputam pela melhor receita a base da iguaria.
Se o sabor faz jus à fama? Puts, como faz… Chega a ser lindo como cada corte do atum tem sabor distinto, indo do sutil e adocicado ao pujante, concentrado. Nas cidades ao redor de Cádiz – Barbate, Conil, Vejer de La Frontera- é possível comer ótimas tapas com atum de almadraba por valores entre 15 e 36 euros.
Uma viagem gastronômica sensacional, que une prazer gustativo, história, respeito ao planeta e sustentabilidade. Comer bem e aprender: duas das minhas coisas favoritas, juntas, em dias com muito flamenco, Jerez e atun selvaje de almadraba.
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