Era uma manhã de inverno fria e cinzenta em Lisboa. Dentro de uma van aquecida, saindo da cidade rumo à Óbidos, o céu carregado de nuvens pesadas e a garoa fininha soavam até aconchegantes. Ao fundo, em cima das montanhas, as imensas pás heólicas giravam ensandecidamente. Eu ainda estava meio ensonada e só consegui dar bom dia aos meus cicerones, a relações públicas e a responsável pelo marketing da Bacalhôa, por pura educação. Meu destino: Quinta dos Loridos e Palácio da Bacalhôa.
Fui generosamente convidada pela empresa para conhecer suas instalações, um pouco de sua histórias e seus vinhos. Nossa primeira parada foi na Quinta dos Loridos, área usada para a plantação de uvas para espumantes. Assim que desligamos o motor do carro, estranhei: o que uma cabeça de Buda fazia em um jardim em Óbidos? Aliás, o que aquela estátua de 15 metros de comprimento de outro buda deitado fazia lá? Achei que meu sono era tão profundo a ponto de me fazer delirar… Mas não era: na minha frente estava o Budda Eden, jardim oriental de 35 hectares idealizado pelo Comendador José Berardo, o proprietário da Bacalhôa, o nono homem mais rico de Portugal e um dos maiores colecionadores de arte do mundo.
Antes de ter tempo de achar tudo aquilo legal mas tremendamente deslocado de tempo e espaço (até meio brega), fiquei sabendo a razão dele existir: José Berardo, genuinamente horrorizado com a destruição cultural que a demolição dos Budas Gigantes de Bamiyán acarretou– fato ocorrido em 2001 no Afeganistão por obra do Talibã– o Comendador resolveu mandar fazer réplicas idênticas às originais. Empolgado, também replicou mais de 700 soldados de terracota chineses, imagens tailandesas de 10 metros de altura, pagodes… e criou um imenso jardim em homenagem à cultura oriental. Lindo, imponente e agradável até numa manhã garoenta. Mas não dá pra negar que é bem estranho estar em Portugal cercado por budas gigantes.
Depois da visita, fomos até a casa, o Solar dos Loridos. Construído no século XVI por um banqueiro italiano, hoje a propriedade é alugada para quem quiser passar uns dias cercado de história, mobília antiga e arte– mas tem que alugar INTEIRA, com todos os seus 8 quartos, cinco salas e por aí vai. Antes de ir embora, uma passadinha na loja da Quinta, uma cave natural, gelada e úmida, onde são vendidos todos os rótulos da Bacalhôa por preços que vão de 6 euros a 40 euros. Nessas horas penso como pagamos absurdamente caro os vinhos no Brasil. ABSURDAMENTE.
“Em 1998, o Comendador José Berardo tornou-se o principal accionista e investiu no plantio de novas vinhas, na modernização das adegas e na aquisição de novas propriedades, iniciando ainda uma parceria com o Grupo Lafitte Rothschild na Quinta do Carmo. Em 2008 a empresa comprou a Quinta do Carmo, tendo o Grupo Lafitte Rothschild adquirido uma participação na Bacalhôa Vinhos de Portugal. O Grupo Bacalhôa dispõe de adegas nas regiões mais importantes de Portugal: Alentejo, Península de Setúbal (Azeitão), Lisboa, Bairrada, Dão e Douro. Tem capacidade total de 20 milhões de litros, 15.000 barricas de carvalho e uma área de vinhas em produção de cerca de 1.000 hectares”
Ah, sim, o Palácio… Fiquei absolutamente honrada: ele havia sido aberto só pra mim! Com direito a mordomo de uniforme, cozinheira que preparou um almoço faaaaaantástico (batatas assadas, purê sedoso de agrião e um pato divinamente assado) e degustação de…. todos os rótulos! 32 vinhos em menos de cinco horas! Olhar todas aquelas garrafas enfileiradas, esperando para serem delicadamente abertas, foi uma epifania.
Aqui, todos os rótulos que provei:
– Catarina 2008 (o que mais amei. branco feito com Fernão Pires, Chardonnay e Arinto, cada uma estagiando em madeira separadamente. Elegante, toque de abacaxi)
– Cova da Ursa 2008 (branco 100 % Chardonnay)
– Quinta da Bacalhôa Branco 2009 (sémillon, alvarinho e sauvignon blanc)
– Palácio da Bacalhôa 2007 (tinto encorpado, com notas de café, feito com cabernet, merlot e petit verdot)
– Quinta da Bacalhôa 2008 ( Tinto que leva cabernet e merlot)
– Má Partilha (100% merlot)
– Meia Pipa 2008 (Castelão, cabernet e syrah)
– JP Private Selection do Palmela 2007 (tinto 100% castelão; o antigo vinho chamado Garrafeira, é muito vendido na Noruega)
– Só Syrah (100% syrah, claro)
– Só Touriga Nacional
– Serras do Azeitã Branco 2009 (de faixa de preço mais baixa, tem notas de mel e é feito com fernão pires, arinto e moscatel)
– Serras do Azeitão Tinto 2009 (aragonez– também chamada de tinta roriz–, syrah, merlot e touriga nacional)
– JP Azeitão Tinto 2009 (castelão, aragonez, syrah, é o “vinho de entrada” da marca– ou seja, o mais barato)
– Tinto da Ânfora Grande Escolha 2006 (Maravilhoso! sabor intenso de ameixa, notas de baunilha… feito com aragonez, touriga nacional e cabernet)
– Tinto da Ânfora 2007 (aragonez, touriga nacional, trincadeira, alfrocheiro e cabernet)
– Quinta do Carmo Reserva 2007 (redondíssimo na boca, leva aragonez, cabernet, syrah e alicante bouschet)
– Quinta do Carmo 2007 (aragonês, alicante bouschet, trincadeira, castelão, cabernet e syrah)
– Quinta do Carmo Branco 2009 (Roupeiro, arinto e antão vaz)
– Dom Martinho 2007 (aragonês, alicante bouschet, trincadeira, cabernet e syrah)
– Monte das Ânforas Tinto 2009 (aragonês, trincadeira e alfrocheiro)
– Santa Fé de Arraiolos 2009 (aragonês, trincadeira e alicante bouschet)
– Bacalhôa Moscatel Setúbal 2004 (vinho de sobremesa 100% moscatel)
– Bacalhôa Moscatel de Setúbal 1999
– Bacalhôa Moscatel Roxo 1999 (o meu vinho de sobremesa favorito!)
– Moscatel de Setúbal Superior 1983
– Loridos Chardonnay 2007 (espumante)
– Loridos Vintage 2007 (a minha bebida deste reveillón. guardei a rolha e tudo. Leva castelão e arinto)
– Loridos Rosé 2007 (castelão e merlot)
– Quinta dos Loridos Alvarinho 2008 (excelente, mais ácido como gosto, é 100% alvarinho)
– Quinta dos Loridos 2008(merlot e castelão)
Nem preciso dizer que fiquei trelelé depois dessa pequena amostra, né? Mesmo quase babando no meu próprio casaco e praticamente me rastejando de tanto sono pós-almoço-e-bebedeira, fomos até a Quinta da Bassaqueira, sede da Bacalhôa e onde de concentra todo o processo de engarrafamento e envelhecimento dos vinhos em madeira. Moderno pacas, amplo, com dezenas de obras de arte espalhadas e inúmeros painés de azulejos centenários— o Comendador realmente socializa a arte e faz questão de colocá-la em TODOS os lugares.
Mas, naquele momento, nem a arte salvava minha completa preguiça alcoólica. Depois de um dia maravilhoso e de litros de vinho correndo nas veias, tudo o que queria e precisava era de uma cama– e foi exatamente pra lá que me encaminhei.
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