Quem gosta de jamón (patas traseiras de porcos, salgadas e curadas, tratadas como um tesouro nacional na Espanha) provavelmente já ouviu falar de jamón ibérico e de jamón de bellota. Antes de nos aprofundarmos no tema, melhor esclarecer: ibérico é a raça do animal e bellota (em português, bolota), sua alimentação. Um jamón ibérico pode ser proveniente de porcos alimentados com vegetação nativa e bellotas – frutos do azinheiro e do sobreiro, espécies de carvalho, que se parecem muito com a avelã e conferem as notas adocicadas sentidas na carne do animal – ou com pasto e ração. Isso, somado ao local e espaço no qual vive, fará toda a diferença em seu bem estar e, portanto, no sabor e no preço final do produto.
Dado isso, temos o fato: o Jamón Ibérico de Demoninação de Origem Protegida Jabugo (conhecido anteriormente por Huelva) é um dos mais valorizados do mundo, com a pata chegando a custar 600 euros. Por que? Qual a grande diferença entre ele e outros? Eu fui até a Espanha entender os motivos que, se resumidos em duas palavras, seriam “tempo” e “dedicação”.
A produção daquela fatia fina de carne avermelhada, entremeada por gordura branca e brilhante, com notas adocicadas que remetem a nozes, começa nas dehesas. Bosques mediterrâneos que reúnem árvores centenárias como as de bellotas, espécies nativas (cogumelos e frutos silvestres), cultivos de cereais e vegetais e animais de corte (porco, gado, ovelha), as dehesas constituem um ecossistema que une as necessidades de preservação ecológica e as de produção de alimentos. É ali nos 3,5 milhões de hectares esparramados por 130 municípios de Andalucía, Castilla y León, Castilla-La Mancha, Madrid e Extremadura, que são criados os porcos ibéricos que darão origem ao jamón de bellota. O Jamón de Jabugo, tema desta reportagem, nasce na província de Huelva, na região de Andaluzia.
O termo Jabugo designa a área de cura das peças de jamón 100% ibérico: perto do mar, os pernis desenvolvem um fungo que termina por desenvolver um buquê todo peculiar na carne. Apenas 31 municípios podem elaborar Jamón de Jabugo, o que envolve 1490 dehesas e 27 empresas de cura, como as que fomos conhecer – a tecnológica Cinco Jotas (pertencente ao Grupo Osborne) e a familiar Eíriz -, ambas na região de Huelva. As duas aceitam visitas previamente agendadas.
A legislação exige que cada porco tenha entre 1 e 2 hectares para viver e que seja criado solto. Entre começo outubro e final de fevereiro, acontece a temporada das bellotas, época que ocorre a engorda natural dos porcos (montanera), na qual os animais se empanturram dessas castanhas . E haja comida! Para cada quilo de peso, eles ingerem doze quilos de bellota e cinco quilos de pasto. Eles chegam a andar 14km/dia à procura de alimento: e é esse movimento o responsável pela gordura bem distribuída do jamón de Jabugo.
Terminada a montanera, os animais de dois anos de idade são abatidos. As patas traseiras, o corte que origina o jamón, seguem para a salga; o restante da carcaça terá diferentes destinos. Toda carne proveniente desses porcos será vendida como “ibérica”.
Aqui vale uma explicação detalhada: para ser chamado de jamón ibérico, a mãe precisa ser 100% pura (ibérico) e o pai pode ser Ibérico ou Duroc, raça norte-americana. Quando você vai ao mercado e compra jamón, notará que na perna existem selos afixados. Funciona assim: se há um selo preto, significa que o porco é 100% ibérico e teve vida livre; vermelho, ibéricos cruzados com duroc, também com vida livre; verde, porcos de vários cruzamentos, alimentados por pasto e ração e com 100 metros quadrados cada, para passar a vida; branco, porcos de vários cruzamentos, alimentados somente com ração em dois metros quadrados/cada. Isso significa vidas, bem estar, sabor e preços absolutamente distintos.
O próximo passo após o sacrifício e o destrinchamento é a perfilação, na qual um especialista retira o excesso de gordura da capa para garantir salga homogênea, momento na qual são massageadas para que quaisquer líquidos ainda presentes nos vasos sanguíneos sejam expelidos. Então, as patas são levadas para a salga numa sala de temperatura controlada, enterradas em sal marinho e ficam descansando um dia para cada quilo de peso (média de 5 dias). Salga realizada, vão para os secaderos.
Secaderos são salas rodeadas por janelas constantemente abertas, com humidade e temperatura naturais, nas quais os jamóns irão desidratar durante o verão devido a ação do sal, do calor e do vento. São as características climáticas de Jabugo – altitude de 700 metros, grande oscilação de temperatura dia/noite, alto índice de chuvas – que fazem da região um local único para a produção de jamón. Após três meses, as peças seguem para a última etapa, a cura.
A cura é realizada nas bodegas, locais geralmente subterrâneos, de temperatura natural ou controlada artificialmente (varia de produtor), nos quais ficarão por, no mínimo, quatro anos. A cada ano, a peça perde 3% de seu peso.
Neste período, cada perna será mudada de lugar cerca de 15 vezes. A razão é simples: garantir o padrão no processo de cura porque, afinal, cada canto da bodega tem uma característica levemente distinta de temperatura e humidade. De tempos em tempos, um funcionário besunta cada jamón com óleo de girassol ou gordura do próprio porco, a fim de manter a hidratação e garantir que os fungos benéficos, responsáveis por boa parte das notas do sabor, continuem por ali. No momento de deixar a bodega para seguir ao mercado, cada pernil é escovado a fim de retirar o excesso de fungos, e etiquetado.
Um processo secular de máximo respeito a todos os fatores envolvidos – meio ambiente, pessoas, animais, estações do ano – que resulta numa iguaria para ser apreciada com calma. Jamais em quantidade, mas sim em qualidade. Apreciada como o tesouro gastronômico que é.
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