Quando brasileiros pensam na gastronomia alemã, o que vem em mente não é exatamente leveza, frutas e vegetais frescos, doces delicados, pratos harmoniosos. Pensamos, imediatamente, em imensas porções de chucrute, salsichas e eisbein acompanhados de cervejas em canecas do tamanho de crianças de quatro anos. Pois estamos equivocados. Claro que há salsichões e repolhos/pepinos/conservas, mas reduzir a culinária alemã a isso é como afirmar que no Brasil só rola feijuca e churrasco.
Recentemente tive o prazer de passear pelos campos de morango, pepino e aspargos do nordeste da Alemanha – passando pelas cidades de Beelitz, Burg, pela Floresta de Spreewald e Radebeul – e ver que leveza e frescor fazem muito mais parte do cotidiano deles do que muitos brasileiros…
A época em que fui – meio de junho – é especial por ser o auge da temporada de morangos, o final da de aspargos e o começo da de pepinos (quando colhem as mais de 40 variedades do legume para fazer picles). Para quem curte ver de onde vem os produtos que consome, como são plantados, qual o método de produção empregado, é um tremendo e divertido passeião (além do tempo estar lindo, ensolarado e quente, com temperaturas entre 26 e 32 graus).
Saindo de Berlim, de carro, vá até Beelitz e, lá, visite Buschmann & Winkelmann, fazenda de aspargos, morangos, blueberrys e abóboras com uma ótima estrutura turística que inclui restaurante, interessantíssima loja de produtos locais, passeios pela floresta e a possibilidade de colher, você mesmo, o que irá levar pra casa/hotel/carro. Dá para passar o dia todo por lá, felizão.
Acompanhei, naquele dia, a colheita de aspargos. Olha, não à toa é algo caro! Durante os dois meses da temporada, centenas de trabalhadores vem da Polônia e de países do Leste Europeu para o serviço. Neste tempo, dependendo do quanto colherem, conseguem fazer até 200 euros/dia, o que garante a grana da família pelo resto do ano.
De sol a sol, tiram um por um dos aspargos da terra, assentam o terreno, viram várias vezes durante o dia os grandes plásticos que cobrem cada fileira de plantação e os responsáveis por equilibrar a temperatura (o lado branco isola o frio; o lado preto, concentra calor), transportam os carrinhos lotados para a central na qual acontece a limpeza, separação por tamanho, empacotamento e envio. Logo aqui em cima você pode ver um vídeo que fiz e mostra direitinho o processo que rola no campo.
Asseguro que dá uma vontade gigante de comer aqueles aspargos brancos e verdes de Beelitz, considerados os melhores do mundo. Mas se segura porque antes de seguir para o restaurante e mandar um tremendo schnitzel (milanesa) de porco com aspargos cozidos e regados com molho holandês é hora de colher morangos. Eu me diverti pacas! Não só porque é uma atividade bem rara para alguém que, como eu, mora numa grande cidade dominada pelo concreto e poluição, mas também porque são os melhores, mais doces, lindos, vermelhos e perfeitos morangos que comi na vida. E, na boa, pouca coisa é mais maravilhosa do que tirar uma belezinha daquela do seu galho, passar levemente na roupa e comer inteiro, numa mordida só. Isso sim é luxo!
Nesta época, você encontrará tanto os aspargos quanto os morangos de Beelitz – produzidos em Buschmann & Winkelmann com o mínimo de químicos- em restaurantes e vendas por toda a Alemanha, nos mais variados pratos, em doces deliciosos, em bebidas (inclusive num licor de aspargos que é péssimo num primeiro instante e bem bom em todos os outros). Não lembro qual a última vez que me senti tão conectada com a cadeia de produção de alimentos, com o que como. Me acostumei tanto a cadeiras de restaurantes que quase me esqueci a delícia de estar na terra.
Depois de Beelitz, segui para a linda região da Floresta do Rio Spree (Spreewald), que parece saída das páginas finais e felizes de algum conto de fadas: dezenas de pequenos e quietos caminhos navegáveis pelo rio Spree; árvores frondosas projetando sua sombra sobre a água calma; barquinhos passando vagarosamente ao lado de casinhas distantes entre si. Duas horas de paz na terra – comendo o primeiro picles de pepino alemão da temporada. 🙂
Por falar na região dos pepinos e de campos e de natureza, uma figura merece citação: o animado chef Peter Franke. Famoso na Alemanha por ser especialista em ervas, e por usá-las como parte fundamental de todos os seus pratos e bebidas, Peter possui dez restaurantes e um projeto pessoal bem interessante, o Spreewalder Krautermanufaktur , em Burg. Em sua casa, o chef recebe apenas grupos com hora marcada. Ali, a refeição é a mais natureba possível: frutas, legumes, vegetais e ervas orgânicos, sazonais e produzidos localmente. Ir com um grupo de amigos pode ser bem divertido, já que os comensais ajudam na preparação da refeição enquanto tomam espumante de maçã, cervejas, vinho de morango com morangos inteiros e endro, e assistem uma aula sobre cada um dos ingredientes usados. A comida é ok, mas o programa em si é bem legal.
Já em seu restaurante em Werben, dentro do hotel Landgasthof Zum Stern, Peter serve receitas mais tradicionais da região- também orgânicas e com pouco sal – como o famosíssimo e nada ácido picles de pepino alemão (clique AQUI para receita), pepinos com endro, mostarda em grão, pimenta em grão e suco de pepino (perfeito para o calor), picles de pepino servido morno com creme de leite temperado e peixe de rio grelhado… Tem pepino que não acaba mais. Se você procurar no mercado da cidade, tem até cerveja com adição de suco de pepino!
Depois de tanta coisa saudável e fresca – veja bem, nenhum chucrute ou salsichão! – estava começando a ter crise de abstinência de doce. Sério, precisava de açúcar refinado (hahahaha). Foi a doceria Konditorei und Cafe, na região vinícola de Radebeul (sete quilômetros de Dresden), que me salvou. Com 76 anos de existência, é um daqueles portais dimensionais para a alegria eterna. Sério… Como em todos os lugares pelos quais passei na Alemanha, ali também usa-se bastante ingredientes frescos e de temporada: é fácil encontrar bolos de framboesa, ameixas, sementes de papoula, morangos, mirtilos.
Fiquei apaixonada pela torta de ameixas pretas (Pflaumekuchen)- quase vivas de tão frescas – com crumble de marzipan e chantilly. Eles não são nada bobos de ter a tradição do ‘bolo e café da tarde’! Outra maravilha é a torta molhadinha de sementes de papoula com nozes (mohndessert) e o Karl May, bolacha típica da cidade, feita com amêndoas, manteiga, passas e massa de Stolen (o panetone alemão). Mas se você for provar uma coisa só, terá que ser o Baumkuchen.
Em formato de colméia, com andares anelados, a maravilha tem receita nascida em Dresden e é produzida numa máquina especial parecida com a que se faz kebab, só que na horizontal. Sei que parece difícil, mas imagina um forno que em vez de gás tem placas de calor como se fosse um aquecedor; dentro dele, um suporte no qual se coloca a massa e, dentro dela, um cilindro que formará o ‘buraco’ no meio. Então, esse cilindro vai rodando lentamente para assar o preparo de todos os lados. O segredo é tirar antes de que a massa fique morena e perca umidade. E ali ela é perfeita! Viciantemente fofa, preparada com amêndoas e de sabor bem semelhando ao do marzipan, coberta por uma camada crocante de chocolate 60% cacau.
A Alemanha é muito, muito mais que chucrute. Nós é que precisamos descobri-la e, inevitavelmente, nos encantar por ela.
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